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A imortalidade da lembrança

Daquelas coisas que acontecem e que a gente não sabe se foi coincidência ou se foi mais uma inesperada curva do destino.

Nesse último domingo, acordei muito cedo. Acho que antes de 5 da manhã. O sono havia desistido de mim. Até tentei procurar por ele de novo, mas foi em vão. Como não tenho saco de ficar rolando pra lá e pra cá na cama, claro, levantei.

Com um cafezinho nas mãos, comecei a ler, não sem antes alimentar as rolinhas que insistem em viver na nossa sacada desde o início da pandemia. Aliás, nasceram mais dois filhotinhos. Mamãe-rolinha me encarou com os seus pequeninos olhos sem se mexer na sua tarefa de proteger os bebês. Já passei um baita susto com elas. Tá aqui nesse link.

Li algumas páginas de um livro, tweets, mensagens. Passei para os jornais do dia. Na revista ELA de O Globo, deitei a atenção sobre o texto da Martha Medeiros, “ Seu tempo de vida depois da morte”. Em um dos trechos: “Quanto tempo de vida você imagina que terá depois de expirado seu prazo de validade? A boa notícia: enquanto alguém lembrar de você, a sua morte será parcial”.

Bráulio Tavares, que lidera algumas oficinas literárias das quais faço parte, já havia feito um comentário no mesmo sentido. “Se alguém ainda falar de mim após a minha morte – nem que seja o primo do cunhado do vizinho de lá de Campina Grande, minha cidade de nascimento – serei lembrado, estarei vivo”.

Pra mim, meu pai e minha mãe, que já se foram respectivamente aos 94 e 90 anos, estão vivos. Naquele instante desse mesmo domingo insone, senti que iria receber a ligação matutina dela. Acontecesse o que acontecesse, estivesse eu onde estivesse – em casa ou, por exemplo, no Maracanã ou na TV Globo trabalhando – minha mãe me ligaria. Fazia parte da rotina do seu dia.

Mencionei meus pais porque acho que não haveria espaço pra citar todos aqueles que de uma forma ou de outra fazem parte da interminável lista de lembranças que está dentro daquela minha caixinha de memórias. Essa lista é longa. Falo dessa minha caixinha nesse link acima.

Mas, como escrevi sem saber se a leitura do artigo foi ou não uma coincidência, poucas horas depois recebi uma mensagem de um primo dominicano. Já disse por aqui que sou filha de um preto brasileiro e de uma mulher que nasceu em um povoado no interior da República Dominicana. Minha família vive por lá e, agora, também na Espanha.

Tía Teté partió a su outra vida durante el sueño”, me escreveu ele. Tia Telma era a irmã mais velha da minha mãe. Não tinha nenhuma doença aparente: tinha 103 anos.  Há um pouquinho mais de uma semana deixou de comer, de falar, não queria mais sair da cama. Foi se despedindo da vida.

Em setembro, outra tia também de 103 anos, brasileira, partiu quase do mesmo jeito. Ficou mais de um dia sentada na sua poltrona predileta. Não queria nem ir pra cama, nem comer, nem beber água, nem assistir tevê. Durante a tarde, chamou a cuidadora e disse: “ Estou indo”. O coração parou. Se foi como um passarinho sem canto. Escrevi sobre ela quando foi vacinada contra a Covid-19 no primeiro dia da campanha. Precisei convencê-la.

“Quem não é famoso, precisa garantir a própria imortalidade através da autêntica e sincera saudade”, escreve Martha Medeiros em outro trecho. Sim, a presença deles é muito forte, assim como, a saudade e a lembrança. Não serão esquecidos por mim.

Continuo a refletir como esse texto veio parar diante de mim na manhã dessa notícia sobre a morte de mais uma tia centenária.