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A vacina e as rosas amarelas

Corria o mês de setembro de 1918. O Rio de Janeiro começava a ser acometido de uma doença que levava à morte. Não havia ministro da saúde. Havia um diretor-geral de higiene que disse ao jornal Correio da Manhã no dia 23: “aparentemente está tudo sob controle. “Até agora nenhum caso suspeito da influenza espanhola chegou (..) Fui pessoalmente a bordo (…) Fiquei convencido de que não havia motivos de intranquilidade”.  Havia sim. Não estava tudo sob controle. Qualquer semelhança com o que vivemos desde 2020 não é mera coincidência.

A doença embarcou no Demerara vindo de Lisboa com uma escala fatal em Dakar. ”A gripe desceu do navio nos pés dos marujos que se espalharam pela praça Mauá…Em dias, os primeiros sintomas se fizeram sentir. As pessoas começaram a passar mal, a cair doentes e a morrer em questão de hora” ( A Metrópole à beira Mar, Ruy Castro, pág. 17) No dia 11 de outubro, eram 440 doentes e 3 dias depois 20 mil.  No mês seguinte, novembro, já eram 15 mil mortos.

A doença fez um strike na cidade que naquela época tinha cerca de 940 mil habitantes. No meio deles, estava minha tia Djanira. Nasceu em maio daquele mesmo ano em uma das ladeiras do morro de São Carlos, no bairro do Estácio, centro do Rio. Filha mais velha de um casal neto de escravos, recebeu esse nome chique como o da famosa pintora. A família ficaria por essas bandas do Estácio até meados da década seguinte. Meu pai, o segundo filho dessa família, que ainda teria mais 8 componentes, também nasceu na mesma rua do morro.

Na segunda-feira, 1º de fevereiro de 2021, minha tia Nira – quando criança nunca consegui falar o nome dela direito e o apelido ficou – foi vacinada contra a Covid-19. Um mês depois, tomou a segunda dose. Está com 102 anos. Enfrentou duas pandemias.

Já vinha conversando com ela a respeito da vacina há algum tempo. Conversava na esperança de que essa vacina se transformasse em realidade ainda mais rápido do que de fato está acontecendo Brasil afora. Mesmo que fosse apenas assunto de telejornais, discussão de médicos, cientistas ou de laboratórios, falava com ela sobre o tema.

Sempre pelo telefone, tentava dizer a ela que seria importante participar da vacinação. “ Minha filha, não é pra mim. Vou tomar, não. Não é preciso”, repetiu algumas vezes. Ao final de cada bate-papo telefônico, perguntava: “ quando você vai vir aqui em casa? Não tem ninguém pra fazer massagem nos meus pés”. Bobeira. Tem sim.

A cuidadora está sempre com ela. A questão é que ela gosta que eu faça a massagem com o creme para pés cansados da Granado. Além disso, eu também levo flores, em geral, orquídeas ou rosas amarelas, bolo diet, panos de pratos novos, toalhas de banho macias, colônia bem fresquinha e, claro, muito carinho e os meus ouvidos.

Esse fim de frase sobre a ida à casa dela sempre era a “deixa” para continuar a falar sobre a vacina. “Tia, é por isso que você precisa tomar a vacina. Assim, não posso ir aí”. Silêncio do outro lado da linha. Tá bom, minha filha, vou pensar”.

No dia 1º de fevereiro, liguei para a outra sobrinha dela, já que a Prefeitura começava a vacinar pessoas com 99 anos ou mais. A princípio, estava programada a ida da tia ao posto de vacinação durante à tarde. Mas, ela me disse que seria melhor ligar para a minha tia e madrinha. Disse que a nossa tia vinha andando esquecida, mas estava lúcida e não queria tomar a vacina.

Liguei. Já comecei a conversa perguntando a que horas ela iria ao posto de saúde.“ Ah, minha filha, acho que à tarde. Mas, minha perna está inchada. Quando vem aqui fazer massagem?” Foi o sinal: “só quando tomar a vacina. E, pede pra me mandar uma foto. Só assim vou acreditar”.  

No dia seguinte, liguei cedo. Me disse que vacina não dói: “ Meu braço está ótimo”. Duas pandemias separadas por mais de 100 anos, mas dessa vez com vacina, flores, foto no celular e massagem nos pés!