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Norberto e Elisa

Saiu de casa cedo. Levantou antes de ouvir o galo do terreno vizinho anunciar o dia. Mal sabia que essa data se tornaria um marco na sua existência. Cá pra nós, acho que sempre é assim. Por mais, que prestemos atenção ao que nos ronda, ao que nos irrita ou alegra, nunca temos a real noção do que nos espera na próxima curva do nosso caminho. Destino?

Já na estrada, Norberto só tinha olhos para a fina neblina que se espalhava com a chegada do sol. Precisava enxergar o ônibus ao longe e pular na frente dele forçando a frenagem. O motorista do horário tinha por hábito escolher quem seria digno de ser seu passageiro. Passava em velocidade por várias paradas sem se preocupar se havia alguém com hora para chegar ao serviço, à consulta médica, à casa de um parente, à escola. Era odiado. Reclamações não surtiam efeito.

Enfim, o ônibus prateado surgiu. Não só parou, sem que ele precisasse fazer algum aceno, como o motorista lhe deu um bom dia sonoro. Desconfiado, Norberto embarcou. Lá no fundo, a avistou. Ela dormia envolta em um chalé vermelho, cabelos jogados pelo rosto. Caminhou até ela, ignorando os outros poucos passageiros, apontou a arma para a cabeça da mulher. A senhora da poltrona ao lado não conseguiu gritar ou sussurrar de medo. A boca aberta mostrou os dentes restantes. Elisa acordou e viu no rosto dele uma mistura de pavor, ódio e insegurança.

Em poucas palavras, ele anunciou o sequestro. Pediu para um rapaz fechar as cortinas e recolher os telefones celulares. Havia sete passageiros mais o motorista que freou logo e desligou o motor quando entendeu a movimentação do novo passageiro. “Só libero vocês e o ônibus, se ela voltar pra mim. Mato todo mundo começando por ela. Depois, me mato”.

Sei que essa expressão pode ser idiota ou exagerada, mas um silêncio ensurdecedor ocupou o interior do veículo. Todos perplexos. Norberto, no entanto, começou a falar e não parava. Contou toda a trajetória do romance e do casamento com Elisa nos pormenores. Descreveu até a roupa que ela vestia quando a conheceu como caixa de um supermercado. Chorou, riu alto, se lamentou, se vangloriou do homem que era na cama. Tudo isso sem largar o pescoço da ex e sem deixar de apontar a arma para ela e, às vezes, para senhorinha ao seu lado. Terror.

Desconfiados com aquele ônibus parado no meio da estrada, alguns motoristas chamaram a polícia. Norberto não deu ouvidos aos apelos do policial encarregado de negociar com ele. A cada começo de frase da negociação, repetia a história de seu amor infinito por Elisa ou contava mais uma passagem da vida dos dois que, segundo ele, era a prova do que sentia de verdade por ela. Pediu desculpas pelas grosserias, pelos aniversários esquecidos, pelos passeios que não fizeram juntos, pelas desconfianças com o dono de uma borracharia das redondezas.

Com o passar do tempo, todos, passageiros e motorista, foram se penalizando daquele homem. Apaixonado, torturado pelos erros, sentiam que ele ia se desfazendo de toda a certeza com a qual havia anunciado o sequestro. No entanto, a cabeça de Elisa continuava na mira.

Dez horas depois, Norberto desabou no chão. Exausto. Largou a arma, o pescoço da ex e chorou tudo o que podia. Mais e mais. Se deixou agarrar pelo rapaz que havia cumprido com suas ordens iniciais. Foi retirado do ônibus pelos policiais sem oferecer resistência. Envergonhado. Perdido. Mijado nas calças.

Ficou quase dois anos na cadeia. Nesse meio tempo, perdeu o emprego; seu pequeno apartamento em um conjunto popular foi invadido; seus amigos sumiram. Só recebia visitas da mãe. Mas, cumprindo com sua sina, recebeu o perdão de Elisa e voltou a viver com ela em um quarto de fundos da casa da sogra.