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Vini Jr. e a minha memória familiar

Sinceramente, me perdi nas emoções. Minha boca secou e as palavras sumiram. Quando vi as cenas lastimáveis durante a última coletiva da Seleção Brasileira, em Madri, do jogador Vinícius Jr desabei por dentro.

Seu choro foi o meu choro. Sua dor é a minha dor. Covardia. Não pude deixar de lembrar da minha família paterna. Desmoronei mais ainda.

Era uma vez uma ladeira que sai do Largo do Estácio em direção à favela do bairro de mesmo nome no centro do Rio. Lá, em um sobrado no meio do trajeto à parte mais alta do morro de São Carlos, nasceu meu pai em 1920. Sua mãe, a Guilhermina, da qual herdei o nome, já era da segunda geração que não nasceria escravizada. A avó dela, sim, havia sido escrava.

O passado da escravidão nunca foi muito comentado dentro da velha casa de São Cristóvão, onde minha avó faleceu aos 96 anos e onde convivi muito com ela. Pouco se sabia sobre essa tetravó escrava. A minha bisavó Voquinha já havia nascido após a Lei do Ventre Livre aprovada em setembro de 1871. Não tenho conhecimento sobre meu bisavô ou meu tetravô e se tampouco houve casamento formal com algum dos dois. Ou, quem sabe, se Voquinha era fruto de uma relação forçada.

Parece que de alguma forma o passado da escravidão foi abafado. Por algum motivo desconhecido nunca ouvi histórias ou casos de reclamação ou de cobrança pelo fato da família pobre e negra ser descendente de escravos moradores de uma favela. Não havia uma fala de dor ou de falta de crença no amanhã.

Sobre a família do meu avô paterno, negro e, também, do mesmo morro, sei menos ainda. Ele faleceu quando eu tinha 4 anos. Era bombeiro. Lembro de sua irmã um pouco mais nova que vivia – em pecado, como se dizia – com um típico malandro que usava terno branco e chapéu de panamá para desempenhar as funções de apontador do jogo do bicho. Seu figurino é uma imagem forte que restou das poucas ocasiões que o vi quando criança. Não tiveram filhos.

Morreu cedo. Deixou essa tia-avó com problemas financeiros e dívidas. Vez por outra, eu ia com meu pai até o cortiço com paredes de um amarelo queimado e janelas verdes também no morro de São Carlos, onde ela morava. Levávamos dinheiro e comida. Lembro dela com suas argolas douradas imensas, dente de ouro e anel com detalhes em marcassita. Quando faleceu, deixou esse anel para mim, que, aliás, se foi depois de um assalto. Com ele, se foi também parte da história familiar.

Minha avó era uma mulher de poucas palavras e de muito exemplo. Era pequena e de voz baixa. Foram raros os momentos nos quais me deu conselhos. Um deles carrego como mantra. Quando estava para fazer, aos 14 anos, as então disputadas provas para o Colégio Pedro II, me chamou: “Coragem, minha filha, coragem”. Não só passei com boas notas, como cursei dois belos e inesquecíveis anos. Ela foi a que mais vibrou quando eu me formei em Comunicação Social, a primeira de uma longa geração de favelados.

Daqui de tão longe, o que posso enviar para o Vini Jr. é essa força que veio com a minha família. Não importa o que pensem, o que digam, o que xinguem, de onde você venha ou o que não façam por você. A coragem vai estar sempre ao seu lado. E que a força que minha avô brasileira conseguiu deixar esteja ao seu lado. Estamos juntos desde os seus tempos de Flamengo. Bravo!