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Um tênis apertado na pandemia

1,2, 3. 1, 2, 3. Foi assim, praticamente pé ante pé, que ela saiu de casa. Claro, mascarada. Era cedo, por volta de 6 e meia da manhã. Fazia um dia meio sem graça, meio frio. Era um daqueles dias mais cinza que azul de um muito diferente, inesperado inverno carioca.

Já fazia quase 4 meses que suas saídas se restringiam às rápidas idas ao mercadinho da esquina. As compras maiores eram pela internet e com aqueles atrasos de entrega que levaram muita gente à loucura, inclusive, ela. “Cadê o Lysoform pra limpar o chão? Aqui, não dá pra usar água sanitária por causa do cachorro”. Os atendentes não tinham nada a ver com isso. As empresas, por sua vez, apanhadas com as calças nas mãos, estavam finalmente entendendo o tal do “delivery”.

Calçou o par de tênis de sempre. Era confortável, mas, naquela manhã, parecia novo tal a dificuldade do andar. Os dedos se comprimiam. Ela até pensou que seus pés haviam aumentado de 38 para 40 tal a pressão. Fazia algum tempo que não calçava tênis, somente sandálias havaianas.

A rua continuava ainda vazia. Ela até achava que encontraria mais gente. Mas, havia, sim, um som de silêncio. Vez por outra, perturbado por alguns poucos carros e pelo ônibus 309, linha Central do Brasil-Alvorada na Barra da Tijuca, que não falta nem mesmo nos dias mais estranhos como aquele. É conhecido o seu trajeto, principalmente, pela zona sul do Rio.

Tomou o caminho ao longo do canal do Leblon. Ninguém passava. Muitas folhas pelo chão, úmidas. A madrugada anterior havia sido de chuva. Calçadas e asfalto estavam amarelos como a cor da mostarda com corante da lanchonete Bob’s. Estava na cara que a Comlurb também vivia ainda em ritmo de parada pandêmica. Chegou até a escorregar.

Às vezes, o ruído de rádio de algum porteiro dos prédios surgia em meio a esse caminho solitário. Mas, na sua maioria, nada: nem som, nem gente.

O dedo mindinho do pé esquerdo se apertava dentro do tênis e o coração dentro do peito.” Como imaginar que um caminho tão comum até bem pouco tempo atrás agora parecia desconhecido e ameaçador? Vai que esse vírus danadinho poderia estar à espreita na esquina da rua Rainha Guilhermina?” E, quem sabe, preparado pra trazer mais uma para o seu lado, pra trazer mais alguém para o lado negro da sua força virótica?

Enquanto caminhava, era assim que seus pensamentos se comportavam. Evoluíam de um lado para o outro dentro da sua mente.

Lembrava daquele filme com Will Smith, “Eu sou a Lenda”. No roteiro, um homem divide com um cachorro a luta pela vida enfrentando criaturas fantasmagóricas numa cidade devastada. “Será que das águas escuras do canal da avenida Visconde de Albuquerque pode surgir um monstro?” “Darei eu conta de lutar com ele?” , pensava.

Suas ideias sacolejavam como criança na montanha-russa: pra cima, pra baixo, da esquerda pra direita. Começava a achar que era medo mesmo.

Enfim, chegou à orla da praia. Sozinha nesse solitário desafio. Ali, viu um pouco mais de gente. Havia também um som que era seu conhecido, aconchegante. Era o vai-e-vem das ondas que batiam com força na areia depois da agitação provocada por algumas horas de chuva.

Foi como se tivesse recebido uma medalha por ter feito aquele curto caminho em meio a tanta incerteza. Pensou que talvez aquela chegada à areia poderia ser irrelevante para alguns, mas pra ela com certeza foi uma vitória. Seus pés finalmente relaxaram na fria água do mar. Seu coração também.