Ela nasceu sozinha. Você pode dizer: “nós todos nascemos sozinhos”. No caso dela foi diferente. Ficou alguns minutos fora da barriga materna em meio a um monte de capim e terra. Foi recolhida por um estranho que a envolveu em uma camisa branca. Ninguém sabe como tudo aconteceu. Só se sabe que ela vingou, como diz a linguagem popular.

Era um dia quente de janeiro. O céu ia ficando cada vez mais cinza e pesado como se fosse esmagar as cabeças das pessoas. A terra parecia pedir pelo amor de Deus que a chuva caísse. Enfim, caiu e levou pela frente tudo o que encontrou. Quem sabe, o corpo da mulher que a pariu não tenha acabado em um valão ou em um rio das redondezas. A inundação naquela data foi recorde. Mais ou menos, a população esperava esse tipo de temporal. Todo ano era assim mesmo. O primeiro mês do ano chegava cheio de novidades, mas com essa marca, chuvas inacreditáveis.

Na sua certidão de nascimento consta o ano de 1966, quando uma grande enchente paralisou a cidade do Rio de Janeiro. Dutos de esgoto estouraram. Houve racionamento de gás, energia e água. Os meios de transporte pararam. Dizem que 250 mortes foram constatadas. Cinquenta mil pessoas ficaram desabrigadas. Uma tragédia.

Tem gente que argumenta que ela poderia ter nascido no ano seguinte. Em 1967, na mesma época, também caiu outra chuva impressionante sobre a cidade. No entanto, como a data registrada na certidão era 10 de janeiro, tudo apontava mesmo para o ano o anterior.

Pai desconhecido e mãe Eugênia Marques, a mulher que a criou. Foi através dela que conseguiu saber sobre a sua solidão ao nascer; que o cordão umbilical foi cortado com um canivete e que o homem que a resgatou caminhou rápido até a pequena casa na subida do Morro de São Carlos, região central. Apavorado, se atropelava nas palavras que descreviam a cena: uma mulher morena de cabelos pretos sem vida e com uma menina nos braços. O vestido azul manchado de sangue. Ele jurava que não tinha nada a ver com o caso, que só pegou o bebê para não a deixar morrer.

Não houve tempo nem de saber mais sobre o que havia se passado. O homem largou a criança nos braços da desconhecida, desceu a rua correndo tropeçando nos próprios pés. Sumiu. Nunca foi possível descobrir quem era. Só restou a Eugênia se recolher, começar a limpar e alimentar o bebê. E, mais, pensar como contar toda aquela história maluca ao marido.

Não só contou como também deu mais dois irmãos à Aparecida. Escolheu esse nome por ser devota de Nossa Senhora a quem pediu que ela sobrevivesse.

Muitos verões passaram, muitas outras grandes chuvas desabaram sobre o Rio. A cada uma delas, se colocava a imaginar como havia sido salva. Quem seria aquela mulher que fez o parto sozinha no meio da rua?  Quais seriam as razões que a levaram a ter o bebê naquele local? Quem seria esse homem que passou por ali exatos minutos depois do seu nascimento? Seria seu pai biológico que não queria assumir a filha?

Teve raiva. Ficou triste. Lamentou essa chegada ao mundo de maneira tão trágica. Queria saber mais sobre suas origens.

A raiva um dia passou. A tristeza foi sumindo. Agora diante das imagens da tevê que exibem mais um temporal que alagou muitas regiões do Rio, ela se acha uma pessoa de sorte. Poderia não ter resistido. Poderia ter sido arrastada pelas águas raivosas daquele 10 de janeiro.

Olhou para o lado, sua mãe dormia no sofá sem dar muita atenção ao seu redor. Já fazia alguns meses que Eugênia vinha se desligando do mundo. Pegou na sua mão e deitou sobre suas pernas. Aquele colo a salvou. Agradeceu.