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Rex, o Natal e as bicicletas amarelas

Sentada na minha mesa de trabalho pensava em uma das minhas férias quando criança. Diante de mim, tinha a vista da cidade iluminada, dos edifícios altos e das ruas cheias de carros. Ao fundo, uma dessas árvores de Natal que a prefeitura monta com um monte de lâmpadas.

Em um desses dezembros de férias, passei a ficar a manhã toda sentada na calçada em frente de casa. Gostava de ver três meninos que passavam pra lá e pra cá nas suas bicicletas amarelas. Não sabia quem eram. Só sabia que moravam num casarão em outra área fora da nossa comunidade. Não dava a mínima para o que cada um dizia. Só tinha ouvidos para o som das rodas no chão de terra batida.

A nossa rua não tinha saída. Acabava de cara no começo do morrinho. Assim, a turma ia até o início da mata e voltava. Ia e voltava. Atrás deles e das bicicletas, corria o Rex, um vira-lata branco com manchas pretas e marrons. Depois que se cansava ficava junto ao meu portão. O nome Rex eu mesma dei. Não sabia se ele tinha outro nome, se tinha dono. Mas, eu não ligava para ele. Meu negócio eram as bicicletas. Era o meu sonho ter uma delas.

Não lembro quanto tempo ficava ali sentada. Só voltava para dentro de casa quando minha mãe me chamava para o almoço. Sentava à mesa com a certeza de que não podia entrar na dança diária daquelas rodas de metal. Ninguém compraria uma bicicleta para mim, nem uma velha e enferrujada. Não havia dinheiro para isso.

Às vezes, olhava pela porta da sala e via o Rex ainda no portão. Ele só ia embora quando o dia também ia embora. No dia seguinte, quando as bicicletas retornavam, lá vinha ele de novo. Se cansava, sentava ao meu lado e, eu, nem aí para ele: dava de ombros.

Quatro dias antes do Natal desse ano, choveu muito. Nunca havia visto tanta água. A lama que veio do morrinho invadiu a nossa casa. Só deu tempo de pegar a mochila com os meus livros e cadernos e a carteira da minha mãe. O corpo do meu pai ficou debaixo da lama que o encontrou enquanto ele tentava salvar um velho rádio.

Fomos levadas para o pátio coberto da igreja. Sem entender bem o que acontecia, ouvi um monte de história triste, uma atrás da outra. Através de uma delas, soube que um casarão da rua principal havia sido atingido pela lama e pela enchente do rio quase ao mesmo tempo. Nele morava uma das famílias das mais ricas da cidade. Todos morreram. A correnteza levou até as bicicletas amarelas dos três meninos Bastos.

Aquela história bateu na cabeça como um côco que cai do alto. Como, meu Deus? Será que seria aquele trio que eu via toda manhã? Será que eles e suas bicicletas também haviam sido levados pela lama? Não conseguia acreditar. Não conseguia nem mais ouvir a continuação de mais uma das muitas tragédias que havia se abatido sobre a região.

Sentei num cantinho e chorei muito. Acho que, de uma só vez, saíram todas as lágrimas acumuladas: as por causa do meu pai e, agora, também, pelos meninos e suas bicicletas amarelas. Minha mãe me abraçou forte sem dizer uma palavra. Choramos juntas.

Na noite de 24 para 25 de dezembro, o padre e algumas pessoas de fora trouxeram comida e roupas. Quando me sentava para comer um pedaço de frango, senti algo gelado na minha perna. Era o focinho do Rex.

Ele se sentou perto de mim como sempre fazia depois que se cansava de correr atrás das bicicletas. Bicicletas que agora deviam estar retorcidas em algum ponto do rio abaixo. Elas se foram, seus donos se foram, meu pai se foi, mas Rex estava junto a mim. Ao meu lado, Rex ficou por mais 12 Natais.