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Os bombeiros de Paris

Derramei muitas lágrimas à beira do rio Sena. De alegria e pela sensação de achar que em outras épocas vivi por ali. Inesquecível. Apesar do mau humor conhecido dos habitantes e do trânsito confuso, amo Paris.

Quando assisto séries e filmes realizados na cidade, fico perdida entre as ruas, os personagens e os locais. Lembro que passei naquela escadaria para achar uma boulangerie recomendada; que me escondi da chuva naquela marquise de uma loja de livros; que tive que entrar em um café para suportar o frio; que caminhei por uma ladeira com a vista de uma igreja ao longe. Saudade.

Já não visito a cidade há anos. Não sei quando poderei voltar. Está na minha caixinha de memórias queridas. Desejo que voltem.

Uma dessas lembranças veio por conta das várias séries que são filmadas em Paris, como “Dix pour cent”, a bombadinha “Emily em Paris” e  “Lupin”. Em algumas cenas, ao fundo, há o som das sirenes dos “Pompiers de Paris”, os Bombeiros de Paris. Era inevitável não me lembrar da capital francesa e de um evento que por lá vivi.

Era um inverno rigoroso. Estava na cidade com uma amiga para o Salon Internacional de la Lingerie, reconhecida feira mundial do setor. Nessa época, eu atendia uma grande empresa que produzia o fio básico para a matéria-prima do segmento. Nosso hotel ficava na Rue de Rennes perto do Boulevard Saint-Germain e dos famosos Café Flore e Deux Magots.

Era pequeno, quartos idem e com uma mini recepção. Acho que tinha 4 andares com mais dois quartos naquela área de telhado inclinado. O elevador – onde mal cabiam a bagagem e uma pessoa, comum em vários prédios de Paris – foi instalado no vão da escada com os degraus em madeira. Caso fossem dois hóspedes, era preciso colocar as malas no elevador, apertar o andar desejado e subir para resgatá-las. O bom  de tudo eram o preço e a localização. Para ir ao pavilhão de exposições era só pegar um metrô na estação de Montparnasse sem precisar fazer troca.

Uma noite, dormia pesado depois de uma das muitas longas caminhadas. Sonhava com vozes ao fundo, passos no corredor, barulhos estranhos. De repente, percebi que era tudo de verdade. Alguém socava a porta do meu quarto: “Feu, feu” (fogo, fogo) aos berros.

O alarme gritava. Um barulho que dava medo. Somente a possibilidade de fogo em qualquer prédio de Paris é assustador. Ainda mais porque ficam coladinhos uns nos outros.

Sem entender nada, assustada, coloquei meu casaco, peguei minha bolsa com passaporte e dinheiro. Saí do quarto rapidamente. Nem calcei os sapatos. Nem sei se fechei a porta. Não lembro.

Desci os quatro andares correndo. Encontrei minha amiga já no meio da escada do primeiro andar para o térreo. Sentamos e ficamos esperando os próximos capítulos. Os hóspedes foram descendo, se acotovelando pelos degraus, passando por cima da gente. Todos aguardavam as orientações do sonolento recepcionista noturno.

Havia mulher com rolinhos nos cabelos e de camisola, homem sem peruca – havia encontrado com esse hóspede ao chegar e percebi sua estranha e vasta cabeleira – criança de cueca, bebê chorando. Era uma balbúrdia em espanhol. O hotel era um point de argentinos. Todos falavam alto e ao mesmo tempo. Nós duas erámos as únicas brasileiras. Nada de fumaça ou cheiro dela.

De repente, no meio dessa confusão portenha, avança pelo pequeno corredor da entrada uma turma dos “Pompiers de Paris. Silêncio. Não era para menos, o grupo parecia uma seleção de modelos para uma campanha de perfume masculino da Hermés ou da Chanel. Sabe lá de onde saíram aqueles caras: altos, bonitos, compenetrados e, acho eu, aborrecidos.

Fizeram algumas perguntas ao rapaz da recepção. Decidiram subir. O alarme continuava ensurdecedor naquela gelada noite parisiense. Não precisaram dizer nem “Excuse-moi”, com licença. Quando caminharam em direção à escada, as pessoas foram se levantando, inclusive nós. Parecia o Mar Vermelho se abrindo para Moisés. Uma dupla ficou na recepção fazendo mais perguntas e verificando se havia algum ferido.

Não demorou muito, os que subiram desceram com a cara mais fechada ainda. O silêncio, às vezes, era interrompido por um menino bem pequeno: “¿Mamá, qué passa?”,” Mamãe, o que está acontecendo?” A mãe nem piscava nem respondia. Olhos fixos nos bombeiros.

O que devia ser o chefe do grupo começou, em francês, a dar uma bronca em todos. Reclamou que eles tinham coisa mais importante para fazer, que aquilo era um absurdo, que era inaceitável.

Afinal, qual seria a razão de tamanho esporro coletivo que misturava raiva e mau humor?

Quatro adolescentes argentinos haviam quebrado o vidro do alarme de brincadeira. Deu no que deu. Todos se entreolharam sem emitir uma só palavra. Envergonhados. A tropa da beleza se foi. Voltamosde cabeça baixa cada hospéde para o seu respectivo quarto.

Pelo menos, tive a certeza de que, se de fato fosse um casting masculino, seria muito fácil escolher o modelo ideal. Bon nuit!