Categorias:

Lembrança de um passeio e a vacina

Fico pensando em tudo o venho ouvindo sobre vacina. Nunca em tão pouco tempo, li, assisti e aprendi tanta coisa sobre vírus atenuado, RMA, vírus vivo, eficácia, fase 1, fase 2, IFA (ingrediente farmacêutico ativo).

Esses últimos meses têm sido uma verdadeira aula sobre o tema. Nunca fui boa aluna das áreas de Biologia ou Química. Confundia termos. Aquele monte de letrinhas da Química me levavam à loucura. Aprendia o que era necessário para ter boa nota. E, só.

Descobri imunologistas, virologistas, epidemiologistas e mais um sem-número de especialistas que jamais havia ouvido falar. Se há alguma coisa de positiva dessa fase difícil e triste das nossas vidas, sem dúvida, foi esse conhecimento sobre o tema.

Minha vez já chegou. Já recebi a primeira e a segunda doses da vacina contra a Covid-19. Daí, que me veio uma lembrança de infância. Aliás, desde que essa pandemia começou, venho lembrando muito da minha mãe.

Meu irmão, meu pai e eu éramos sua família no Brasil. Ela nasceu em um pequeno povoado de uma pequena ilha no meio do mar do Caribe, República Dominicana. Veio para casar e por aqui ficou até morrer. Todo o restante do seu grupo familiar morava, e mora, na ilha caribenha.

Amava o Rio de Janeiro. Amava Copacabana. Pediu em carta, muito antes de sua morte, para ser enterrada no Cemitério São João Batista em Botafogo. De lá, sabia que estaria sob o olhar atento e abençoado do Cristo Redentor. Foi feita a sua vontade, apesar do jazigo da família do meu pai ser no Cemitério do Caju. Levamos seus restos mortais para lá depois da exumação.

Era super ligada na gente. De fato, acho que temia de fato a perda de um de nós. Era mais que uma preocupação materna. Era também um medo de perder parte do elo que tinha com as terras brasileiras. Sempre foi muito atenta quando as doenças infantis eram o tema das conversas.

Um dos meus tios, irmão do meu pai, teve paralisia infantil, a tão temida poliomielite. Li que houve um surto no Rio na década de 1930, quando ele nasceu. Sobreviveu, mas com graves sequelas: tem uma perna atrofiada e um pé completamente torto e permanentemente na meia ponta – quem for do balé ou da ginástica, vai me entender melhor. Ficou impedido de jogar futebol. Flamenguista fervoroso, adorava ir, especialmente, ao Maracanã. Com ele, fui a muitos jogos: me ensinou a amar o Mengão. Hoje, só pela tevê.

Nas minhas lembranças, está uma fase da minha infância quando a notícia sobre as vacinas contra a poliomielite se espalhou lá pelas décadas de 1950 e 1960. As campanhas não começaram pelo Rio. Em julho de 1961, as crianças de algumas cidades de São Paulo receberam primeiro a vacina Sabin, “oral, de vírus vivo e atenuado”.

Nossa, minha mãe “se puso loca”, como dizia, ficou louca. ¿Cuándo mis hijos van a tener la vacuna?, quando meus filhos serão vancinados? Para falar a real, ela nunca falou português bem. Criou uma língua só sua. Entendia tudo, respondia rápido, mas a seu jeito. Nos momentos de estresse ou de muita alegria, a construção das frases e as palavras eram em espanhol mesmo. Nós nos acostumamos, parentes, vizinhos, povo da igreja, comerciantes do bairro, da feira e amigos idem.

Um dia, finalmente, chegou a nossa vez. Pelos relatos de jornais da época, a data deve ter sido em outubro de 1961. O lema da campanha foi “uma gota, duas doses: uma criança sadia, livre da paralisia”. Lembro da sensação de euforia e de ansiedade da minha mãe. Moveu terras para nos levar para vacinar o mais rápido possível. Poliomielite fora!

Não tenho bem claro, se fomos a um posto num bairro perto do subúrbio do Rio onde morávamos ou ao Centro da cidade. Mas, lembro do figurino. Ela nos vestiu com roupa de “domingo”, no estilo “vamos à missa”: bermuda azul e camisa branca para o meu irmão e vestido branco com barra em bordado inglês pra mim. Pra ela, uma festa. A festa pra nos livrar do vírus da paralisia infantil. Alívio depois que as duas gotinhas caíram nas nossas bocas.

Hoje, com tudo que vivemos no país, continuo a refletir em que momento perdemos esse cuidado com o outro. Um tipo de cuidado materno. Quando deixamos de pensar que somos todos um só, uma só nação. Já contei por aqui sobre a minha tia de 102 anos vacinada na primeira fase de imunização do Rio de Janeiro. Épico!

Me pergunto desde quando era importante saber de qual laboratório era a vacina que seria aplicada. Desde quando passamos a ficar preocupados com uma vacina para nos livrar de um vírus, mas deixamos de nos preocupar com substâncias pra emagrecer, pra dormir, pra acordar, pra aumentar a massa muscular, para acabar com a celulite.

Estamos caminhando lentamente para a imunização de, pelo menos, 70% da população. Ainda vemos briga aqui e acolá por causa de vacinas que chegam, vacinas que não chegam, hospitais para atender os ainda doentes, sem campanha de comunicação sobre a vacinação, sem coordenação central, sem crença na Ciência. Minha mãe me ensinou outra coisa!