Acordei cedo. Era um dia especial. Minhas tias falavam baixinho. Ouvia de longe. Acho que era pra não me acordar. Mas, levantei assim mesmo. Nem tirei meu pijama predileto. Era de flanela azul cheio de desenhos de gomos de tangerina, morangos, fatias de maça mordidas.

Na verdade, nenhum barulho me acordaria. O que me tirou da cama foi o cheiro de bolo. Só de lembrar, sinto de novo aquele aroma da minha infância. Não existe outro igual.

Estava na casa da minha vó. Uma casa antiga, de 1918, de teto muito alto, com forro de madeira e piso de tábuas corridas que costumavam cantar a cada pisada. Na mesma mesa do café da manhã, aliás a única da casa, minhas tias se revezavam preparando brigadeiros, beijinhos de côco, cajuzinhos, enrolavam balas. Quando me viram, perguntaram por que saí da cama tão cedo. Respondi que era o cheiro do bolo.

Minha vó colocou bem na minha frente uma xícara rosa com a beiradinha dourada cheia de chocolate quente. Ficava sempre observando essa xícara na cristaleira da sala. Ainda existia uma azul, uma verde, uma lilás e uma amarela. Eu gostava da rosa. Ela sabia. Das netas e netos, só eu tinha permissão de usar aquela xícara. Dizia que eu não a deixaria cair. Eram presentes do seu casamento.

Me disse pra tomar o leite e comer o pãozinho com manteiga que havia sido feito naquela manhã mesmo. Disse que bolo, só de noite. Àquela hora, não. Percebeu logo que o que eu queria era raspar a forma do bolo com uma colher. Adorava fazer isso.

Pra mim, a festa começava antes da festa. Sentava num banquinho vermelho que meu pai havia feito num canto do  quintal. O cheiro que saía da  cozinha ia mudando vez por outra. Empadinha no forno, pastel na frigideira. De vez em quando, me chamavam. Me davam a prova de alguma coisa. Ficava pedindo pra enrolar os docinhos. Mas, acabava me sujando mais do que outra coisa. Era preciso paciência pra lhe lidar com a minha vontade de participar.

Esse dia foi de um vai e vem intenso. Gelo, guaraná, cerveja, mais ovos chegavam no automóvel preto do meu tio. Ele era taxista. Nesses dias, ficava pra lá e pra cá. Sempre faltava um ingrediente. Quando ouvia o barulho do motor, corria. Me pendurava em uma das duas janelas verdes da casa da ladeira pra ver sair aquele monte de sacolas de feira.

Já de tarde, o bolo foi colocado em cima da mesa da sala sobre uma toalha branca de bainha aberta, bem no centro. Faltava só a cobertura. Uma das minha tias tinha muita força. Batia o suspiro na mão mesmo, transformava aquelas claras em um creme muito branquinho.

De tanto encher o saco dela, pedi pra ir colocando as gotinhas de limão no suspiro. Me ajoelhei em uma das cadeiras. Fui derramando bem devagarinho o líquido verde claro. Quando aquele creme ficou igual neve, foi pra cima do bolo. Ela ia acertando o suspiro com uma faca que tinha cabo de prata.

Não lembro bem de quem era o aniversário. Só lembro que o cheiro desse bolo, a atenção  carinhosa das minhas tias e o calor da minha vó estão agora comigo.