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Céu de verão

Descobri que sou chata. Pode ser apenas constatação porque dormi mal. Fiquei indo de um lado da cama para o outro. Ou, quem sabe, foi por causa do lugar onde me encontro: caindo rumo à depressão.

Não foi fácil admitir esse novo adjetivo de mim mesma. Ando tão perdida nos meus pensamentos embaçados e empurrada pelos anos que não sei mais quem sou. Cheguei a essa conclusão depois que me recusei a trocar de lugar com uma pessoa dentro do metrô. O frio do ar-condicionado estava muito desconfortável. Sempre acho que a empresa faz isso de propósito para acalmar os ânimos dos passageiros e manter o silêncio.

O povo não costuma levar casacos ou xales para se proteger quando as temperaturas estão mais elevadas lá fora e baixas dentro do vagão. O verão brilhava na cidade. Apesar do horário, o calor prometia ser o companheiro de todas as horas.

Após a minha recusa e a cara fechada da mulher de vestido de alças, todos os olhares se voltaram para mim. Foi estranho. Raramente sou o centro das atenções. Não estou habituada. Devo assumir que depois do estranhamento inicial, até gostei.

O que estaria se passando nas cabeças das pessoas. Quem seria aquela mulher que se atreveu a negar apenas a troca de assento com outra passageira? “Por que ser tão desagradável a essa hora do dia? “Chata pra caramba!”

Uma vez na vida pude exercer minha vontade. Amarrei a cara e cumpri com o desejo de me impor a qualquer custo. Era um imperativo interno. “Uma vez na vida, ao menos”, pensei. Baixei o olhar e continuei a minha leitura. As frases e os parágrafos de Machado de Assis no conto “A Cartomante” eram mais interessantes.

Já que aceitei a decisão dos meus pais que acharam melhor que eu fosse funcionária pública do que professora de Geografia. Já que fiquei solteira para não ter que mudar de estado. Já que resolvi deixar de me encontrar com meu irmão porque a mulher dele é muito metódica. Já que a noite de sono foi pra lá de ruim. Enfim, acho que descontei tudo na mulher de vestido branco. Foram tantos os “já quês”, mas tantos, que acabei perdendo o rumo de mim mesma.

Quando me dei conta, a voz fantasma do autofalante anunciou minha estação. Saí correndo. E aí, a vergonha me invadiu. Tropecei na mochila de um garoto. Bati com a minha bolsa nas costas de um senhor. Esbarrei em um ambulante e em sua mala de mercadorias. Dei um pulo para alcançar a plataforma. Queria fugir dali o mais rápido que as minhas pernas pudessem.

Fiquei observando o vagão se afastar e de olho nas janelas. A tal da moça fez um gesto obsceno e muitas caretas na minha direção. Foi o sinal de que de fato me tornei uma pessoa desagradável e chata. Não precisava ter passado por aquele acontecimento bobo. Joguei fora a bolsa térmica com o meu almoço e sentei em um dos bancos. Fiquei por ali até a tarde cair observando o vai e vem das linhas do metrô. Não fui trabalhar, nem comi ou fui ao banheiro.

Quando já seria o horário de voltar para casa, saí da estação. Caíam as gotas fortes dos temporais. Resolvi encarar 12 km de caminhada, ora com chuva forte ora sem nenhuma gota de água. Precisava me lavar de tanta rabugice e colocar a cabeça para se mover rumo a um novo espaço da minha alma. Foi a benção de um céu de verão.