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Aos pedaços

A cortina branca estava ali havia 30 anos. Amarelada e com alguns furinhos era parte da sala de Rita, assim como, da sua vida. Até aquele dia, a costureira não havia se dado conta de tudo o que as duas presenciaram. A cortina sobreviveu à chuva e ao vento que quase a rasgou durante uma tempestade, à poeira da construção da estrada, ao tempo. As duas viram risos, lágrimas, beijos, decisões inesperadas, brigas.

Rita sentou de frente para a janela. Enxergava a cortina semiaberta. Lá fora, parecia que o céu ia despejar muita água para refrescar aquela tarde de verão. O cheiro de terra molhada dos primeiros pingos a fez lembrar do dia em que Marcos bateu na sua porta pedindo abrigo por conta de um temporal. Levou um susto. Nem sabia quem era, mas, sabe lá por que, abriu a sua casa assim mesmo.

Envergonhado, ele pediu desculpas pelos sapatos sujos, pela água que escorria do seu corpo. Rita pediu que esperasse, pegou uma toalha no cesto e panos para limpar o chão. Conversaram um pouco, ela ofereceu café, biscoitos e roupas do irmão mais velho. Ficaram de papo até que a chuva se fosse. Ele prometeu trazer a camisa, a calça e as meias em outro dia: “Não se preocupe. Vou trazer tudo lavado e passado. Obrigado por me abrigar”.

Por que afinal havia deixado aquele desconhecido entrar? Buscava a razão. Mas, de certo não havia. Chegou a sorrir quando lembrou do dia em que teve a certeza de que sua decisão foi a correta: ele acabou se tornando a pessoa mais importante da sua vida.

Na manhã em que as peças emprestadas retornaram, Marcos e Rita começaram a construir uma estrada que compartilharam por muitos anos.

A cortina surgiu nesse momento em que os dois decidiram que não podiam mais ficar um longe do outro. Ela preparou a casa pequena de dois cômodos: fez faxina, costurou a cortina, plantou mudas de plantas no canteiro da frente. Ele comprou uma tevê nova e trocou os móveis do quarto. O irmão dela foi embora para outro canto do bairro.

Não casaram, não tiveram filhos. Viveram do jeito que dava sem grandes projetos. Sempre juntos.

Agora, Rita chegava à conclusão de que era o momento de colocar a cortina para descansar. Subiu em uma escada, a retirou e cortou em pedaços. Depois, a queimou no jardim dentro de uma lata grande.

Ao ver a fumaça, a vizinha correu com receio de um incêndio. Ao ver a cena, fez algumas perguntas. Rita não respondeu. Manteve os olhos nas chamas. Ao se despedir, disse: “É…assim é melhor. O fogo pode apagar essa lembrança de dor”.

Marcos havia sido enterrado no dia anterior. Foi encontrado no piso da sala diante da tal cortina vítima de um infarte fulminante aos 60 anos.