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Amigo nem sempre está no lado esquerdo do peito

Luísa e eu nascemos com apenas dez dias de diferença. Só nos conhecemos quando meu pai foi transferido de Minas para o Rio quando já tínhamos 4 anos. Minha família se instalou em uma casa modesta de uma rua na zona oeste onde a família dela vivia.

Foi interessante quando nossas mães descobriram, digamos assim, coincidências. As duas conversavam muito sobre gravidez, parto, amamentação, sexo após o nascimento das filhas. Eu falei primeiro que Luísa. Ela caminhou antes. Dizem que é assim mesmo. Aos poucos, elas foram percebendo que talvez a amizade das filhas havia sido desenhada para nós duas de uma forma inesperada.

Éramos três: meu irmão mais velho, eu e o caçula, um bebê ainda mamando no peito quando chegamos à cidade. Para os meus pais, foi um alívio essa aproximação com Luísa. Eu passava mais tempo na casa dela do que na minha. Um lugar espaçoso, confortável com dois carros na garagem e um quintal imenso.

Ela era filha única. Tinha tudo o que queria. Piscina, casinha de boneca, jogos, bicicleta, ursinhos, um quarto só seu. Além disso, havia a Madonna, uma labradora que era tratada como uma princesa e que me adorava. Nos acompanhava o tempo todo.

Íamos para a escola juntas. Voltávamos juntas. Acabamos o ensino básico e depois o intermediário juntas também. Foram anos repartindo ansiedades de namoro, menstruação, festas, proibições, medos, enfim, erámos as respectivas irmãs que ambas não tiveram.

Na adolescência, às vezes, Luísa cismava com um namorado meu. Achava que o menino era espaçoso demais ou queria disputar a atenção dela comigo. Eu evitava qualquer briga. Nossa amizade é que valia a pena.

Na faculdade, nos separamos por causa dos cursos. Ela cursou Administração e eu Informática. Depois da pós-graduação, recebi uma proposta de trabalho em São Paulo. Irrecusável.

Dois anos mais tarde, recebi uma mensagem dela. Havia uma vaga na sua empresa, uma multinacional,  onde ela era gerente. Era a chance de retornar ao Rio. Mandei meu currículo e fui chamada para uma entrevista.

Fiz minha mudança em um fim de semana. Voltei para casa dos meus pais que ainda viviam na mesma rua onde crescemos. Luísa já havia mudado para um apartamento de frente para a praia.

Depois de quase um ano, me sentia bem e ainda com muito processo novo para implantar na rotina da companhia. Meu coordenador era ótimo apesar de confuso no seu dia a dia profissional e pessoal. O bom é que me dava bem com ele.

Sabe, não sei como você consegue ser amiga da Luísa. Ela é insuportável, Daniela. Trata mal sua secretária, grita com a faxineira. Não dá nem bom dia. Vive criticando a todos e a tudo”. Esse foi um texto de desabafo de uma colega de departamento enquanto tomávamos café na copa. “Ela é minha amiga desde a infância. Sei que é uma pessoa forte, decidida, mas não é assim como você fala. Tem personalidade forte”. Não levei a sério a conversa. Fofoca de escritório. Empresa grande é assim mesmo, pensei.

Certa manhã, havia uma reunião marcada na minha agenda. Seria bem cedo, às 8 horas, antes do expediente. Quando cheguei, Luísa já estava na sala com meu coordenador e mais um técnico de TI. Ouvi uma frase estranha do chefe logo que abri a porta: “Nossa, atrasada, hein, Daniela? Estamos aqui desde às sete e meia como a Luísa marcou”.

Fiquei sem saber o que dizer. Ameacei sentar. “Já acabamos. Depois pega o que foi decidido com o rapaz”. Luísa se levantou, se dirigindo para a porta da sala, caminhando a passos largos em cima dos seus saltos altos.

A demanda de trabalho daquele dia me levou para longe da sensação estranha no peito que eu havia sentido pela manhã. Ser chamada a atenção por causa de um atraso inexistente me deixou mal. Foi um dia difícil, repleto de muitas cobranças.

Decidi não comentar nada. Imaginei que Luisa também deveria estar sob a pressão da matriz. Ela, por sua vez, não me procurou para, ao menos, comentar o acontecimento daquela manhã.

Uma semana depois, recebi uma ligação do Financeiro. Havia uma nota de um fornecedor que não batia com o orçamento previsto por mim. Pedi para ver. Não reconheci o pedido de serviço. “Seu nome deveria estar aqui, Daniela. Fomos checar com a dona Luísa. Ela disse que isso é de sua responsabilidade. Por favor, acerta isso. Não podemos ter problemas”.

O aperto no coração voltou. Não havia feito aquele pedido.

Dessa vez, resolvi ir direto à sala dela. A secretária me disse que ela estava em uma ligação com a matriz e que chamaria depois. O expediente já estava chegando ao fim. Ninguém me chamou. Voltei à sua sala. “Ah…dona Luísa precisou ir embora. Tinha um compromisso”.

Minha mente não se aquietava. Qual seria o motivo da minha amiga não conversar comigo? Afinal, eram assuntos de trabalho. Tentei falar com ela por mensagem, por voz. Nada.

No dia seguinte, descobri que ela havia viajado para São Paulo e de lá iria para Houston, sede da empresa. Mandei e-mail, enviei mais mensagens. Sem resposta. A viagem demorou quase um mês. De novo fui informada pela secretária que ela emendaria com mais alguns dias de folga. O namorado americano a encontraria na Flórida. Que namorado seria esse? Ela nunca havia me falado desse cara?

Não soube quando ela retornou. Depois desse período, a procurei várias vezes. Marquei almoço. Quando chegava à sala dela, já havia saído: compromisso profissional. Nem, ao menos, deixava um bilhete de desculpas ou mandava uma mensagem. Agendei reunião. Desmarcava.

Resolvi ir ao prédio dela. Cheguei muito cedo. Lá pelas tantas, perguntei ao porteiro pela dona Luísa.Sei não. Já não vem aqui desde a outra semana. Deve estar na casa do namorado. Quer deixar recado?”

Segui para a companhia com os pensamentos no ar. Será que o americano estava no Rio? Ou seria outro cara? Não sabia mais nada.

Depois desse dia, passei a prestar mais atenção nas conversinhas da turma do escritório. Ouvi que não a engoliam nem envolta em mel. Meu chefe se calava quando eu perguntava por ela. Os colegas até me olhavam atravessado porque sabiam que eu havido entrado na empresa por indicação dela.

Uma manhã, soube que ela havia sido promovida a diretora-geral da sede carioca. Dois dias depois, fui demitida pelo RH. Nem me dei ao trabalho de perguntar o motivo. Assinei a papelada e me mandei.

No fundo, sabia que eu havia sido atropelada por aquela dona de tudo, dos brinquedos, da melhor casa da rua, das roupas mais bonitas. Eu era a lembrança de um passado que não fazia mais parte do seu presente.