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A verdade no almoço de domingo

A menina saiu cedo da cama. Dividia o quarto com o irmão pequeno, 3 anos mais novo. Ela deveria ter entre 7 e 8 anos. Bem devagarinho, caminhou pé ante pé, passou pela porta e foi até a cozinha da pequena casa de subúrbio do Rio. Chão de lajotas vermelhas, paredes de azulejos meio verdes, janelas de madeira, teto sem forro.

Ela era alta para a idade com pernas bem fininhas e braços idem. Não comia bem. Mas, era faladeira e muito curiosa. Aprendeu a ler aos 4 e aos 5 anos já escrevia.

A mãe já preparava o mingau de aveia e perguntou por que ela estava fora da cama tão cedo.

 – Meus amigos já estão com fome. Pedrinho come muito, respondeu.

Ainda vestida com o pijama, com os cabelos presos em duas tranças, calçou os chinelinhos vermelhos de borracha, atravessou a área de serviço. Abriu o portão descascado de madeira que levava ao quintal, um dos seus cantos prediletos. O outro era o seu quarto.

O quintal tinha de tudo quanto é pé de fruta. Havia também um galinheiro, onde ficavam os patos e os marrecos, e ao lado a casinha do Pedrinho, um coelho marrom que comia muito, mas não crescia.

Brincalhão ele era amigo do restante da bicharada. Metido, às vezes, levava uma bicada do galo, uma corrida do marreco. Apesar de todas as folhas e cenouras que recebia, insistia em comer o milho das galinhas.

Ela cumprimentou a todos e voltou para pegar a comida. Começava sempre pela turma de penas. Depois, voltava e pegava a folhagem de Pedrinho. Se tinha ovo das galinhas, pegava. Voltava para brincar um pouquinho mais com a turma.

Como numa peça teatral, os bichinhos esperavam pela comida, pela conversa, pela companhia. Se, a cada manhã, ela demorasse um pouco mais do que o habitual todos se amontoavam no portão de madeira. Todos juntos provocam uma algazarra matinal. Tudo pela comida e, claro, pela menina.

Aos fins de semana, esse ritual era mais demorado porque não havia aulas, deveres de casa, roupa pra guardar nem a tarefa de ensinar o irmão a ler.

Ia um domingo como outro qualquer. Ela dormiu mais um pouco. A madrugada havia sido de uma chuva fina como um véu transparente. Ela não foi alimentar os amigos. O pai já havia feito isso. Comeu o mingau. Voltou para as suas brincadeiras.

Se distraia na leitura, inventando histórias para ela e, principalmente, para o irmão. Quando ele se cansava de conversar e ia embora, a menina se voltava para os seus livros, jogo de bloquinhos, desenhos, amigos invisíveis.

– Filha, venha. O almoço está pronto. Não quero ficar na cozinha limpando até muito tarde, ouviu a voz da mãe.

Saiu do quarto com um livro debaixo do braço. Quando chegou à cozinha:

Não, meu coelhinho, não! O que vocês fizeram com ele? Não, não, não!

Seu choro convulsivo deve ter sido ouvido pelo quarteirão inteiro do bairro. A menina ficou sem ar, já não conseguia nem gritar, nem chorar. Suas lágrimas molharam sua blusa azul de listras brancas. Bateu o pé no chão. Deu soco na mesa. Chorou mais e mais.

Na mesa, em cima de uma travessa branca com desenhos de pequenas flores, estava Pedrinho, rodeado de batatinhas e algumas folhinhas verdes: assado.

O irmão, sem saber o que de fato acontecia, chorou. A mãe diante do sofrimento da filha também chorava. O pai tonto não sabia como agir, não sabia a quem acudir. Não houve almoço. O pai se culpou durante anos.

A menina, hoje adulta,  é vegetariana.