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A planilha da enfermeira Rebecca

Era um campo verde cheio de flores miúdas e amarelas. Havia também um riacho de águas claras com pedras redondas à mostra. Me senti criança de novo quando cheguei perto dele. Pulei de pedra em pedra até a outra margem.

Sabia que tinha gente por perto, mas não vi ninguém. Eram só vozes estranhas. Mas, estava feliz. Estava confortável com a minha escolha: sair caminhando, sem preocupação, respirando vagarosamente.

Precisava fazer isso mais vezes. O ar entrava calmamente pelas minhas narinas, preenchia meus pulmões e saia de novo docemente. Ia colocando em prática os ensinamentos das aulas de ioga.

“Aí, Rebecca, pra onde levo a paciente? Qual o leito? Ela está grávida com uma barriga grande. Não sei de quantos meses. Está na ambulância!” As vozes começavam a chegar mais perto. Uma delas estava bem mais próxima de mim. “Oi, o que faço? Preciso pegar outro paciente. Está me ouvindo? O que faço?”

A voz, agora, estava tão perto que dei um pulo. Era uma voz abafada, mas estava mais pertinho mesmo. Num piscar de olhos, o campo verde se transformou num corredor branco. As flores amarelas deram lugar a várias portas com luzes vermelhas acima delas. O riacho, agora, era uma maca vazia a poucos metros da minha mesa.

As vozes ainda, ao longe, se misturavam ao som dos aparelhos da UTI. Não consegui entender a mudança de cenário. Voltei a sentar. Olhei pra tela do meu computador. Uma planilha me mostrava as pedras que deveria pular, uma a uma. Eram os espaços que eu preenchia de acordo com a oferta de leitos disponíveis.

 “Amigo, por favor, me dê um minuto. Já volto.”, disse para o maqueiro Jeferson. “Mas, Rebecca: o que faço?” ouvi ao longe.

Saí correndo até o banheiro. Vomitei tudo o que tinha e o que não tinha no estômago. Será que o Jeff me perguntou se eu estava grávida?, pensei. Minha cabeça era como uma avenida em horário de rush: engarrafada.

Acabei chorando. Chorei imaginando como pular as pedras daquela planilha. Havia apenas um buraquinho vazio no meio de outros tantos buraquinhos preenchidos em vermelho. Eram 4 horas da manhã de um dia longo que eu não sabia quando terminaria. Nunca sabia, aliás. Lavei o rosto. Saí correndo.

Voltei pra frente do computador. Os buraquinhos da planilha eram nomes, histórias, casamentos, amizades, amores, divórcios, traições, namoros que passavam por eles diariamente. Gente desconhecida que entrava e saia da planilha sem, ao menos, se apresentar. Não havia tempo de conhecer um pouco mais sobre aqueles nomes. E, como se nada mais bastasse, uma grávida.

 “Rebecca, preciso transferir um paciente da enfermaria 2 pra cá. Coloco em qual leito?”, a enfermeira Luzia se juntou ao maqueiro Jeferson. Estava na frente da minha mesa. Olhei pra ela mas só enxergava um único espaço vazio. Só havia uma pedra, afinal, para pular: o tal do buraquinho sem cor. “Jeferson, coloca a paciente grávida no leito 12”, ordenei.

“Mas, Rebecca, o que devo fazer com o paciente lá do meu setor? Ele precisa ser intubado….já”, perguntou a enfermeira Luzia atrás daqueles óculos transparentes.

Só pensava: não tenho mais pedra pra pular. Não há mais espaço em branco. Não há mais leito. Chorei por dentro de novo. Meu plantão ainda teria muitas horas pela frente. Na minha cabeça, algumas palavras gritavam: o que fazer com o paciente da enfermaria 2?