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A fé de Doralice

Fé é algo que não dá para explicar. É difícil entender como se processa na cabeça de cada pessoa. A gente, às vezes, não sabe nem mesmo se é fé ou obsessão.

Foi essa mistura de opiniões sobre a fé que chamou a atenção da vizinhança de um bairro de subúrbio do Rio de Janeiro lá pela metade da década de 1960. Ficava no caminho ferroviário Rio Douro.

Lá vivia Doralice. Deveria ter algo em torno de 55 anos. Era magra. Mantinha os cabelos presos em duas tranças que se juntavam em um coque na nuca. Era conhecida pelas suas histórias pessoais recheadas de aventuras amorosas.

Morava em uma casa de fundos de quarto e sala. Na da frente, viviam o irmão e esposa, ambos mais velhos do que ela. Os sobrinhos já haviam saído do lar dos pais e pouco os visitavam. A tia dizia que tinham um apartamento em Copacabana. Confiava que, um dia, a levariam para um passeio a beira mar.

Solteirona, Doralice fazia questão de conversar sobre os namorados. Dizia que as propostas de casamento haviam sido muitas. Os vizinhos achavam que tudo era pura invenção. Apenas motivo para puxar conversa. Por respeito, alguns ouviam. Ela se apoiava na vassoura enquanto varria a calçada, piscava os olhinhos, soltava a língua. Ninguém a levava a sério.

Uma das histórias era sobre o namoro com um padre. Dizia que havia conhecido o homem em meio à subida dos 382 degraus da igreja da Penha na zona norte do Rio. Contava os capítulos da história e fazia o sinal da cruz já que jurava que não sabia qual era a ocupação dele quando o conheceu.

Lembrava com detalhes do dia em se viram pela primeira vez. Ela usava um vestido marfim com pequenas flores amarelas e o véu branco de renda de mulher solteira. Ele vestia roupas masculinas comuns: camisa branca de manga curta, calça azul marinho e chapéu preto.

Em pouco tempo, a troca de olhares se transformou em encontros na casa de uma amiga nos arredores do bairro da igreja. Viveram um romance de cinema, proibido, como ela mesma afirmava. Ninguém da família sabia. Mesmo depois que ela soube que ele era padre, o namoro continuou. Apaixonados.

Contava que certa manhã se apavorou. Chorou tanto que ficou a ponto de desmaiar. Rezou quatro terços até que resolveu fazer uma promessa. Era a última alternativa para acabar com sua aflição. Achava que estava grávida.

Implorou por uma graça para Nossa Senhora da Penha. Prometeu subir aquele monte de degraus de joelhos e vestida de branco. Como qualquer outra ajuda seria bem-vinda, pediu também a colaboração de Santa Teresinha.

Cumpriu o juramento quando teve a certeza de que não estava gerando um filho do pecado como dizia. Tomada de um alívio enorme superou os degraus em uma manhã de primavera. Disse que nem sentiu as feridas nos joelhos. As marcas no corpo eram a prova de sua fé.

No caso da segunda santa, a promessa foi que passaria o resto da vida mantendo roseiras amarelas ao seu redor. Lembrava com louvor do que havia dito a freira francesa: farei cair uma chuva de rosas sobre o mundo” para todos aqueles que pedissem por sua intercessão.

O padre sumiu. Foi transferido e nem carta mandou. Doralice trocou de bairro. Na casa onde passou a morar plantou várias mudas de rosas amarelas. Quando as rosas permitiam, tirava mudas e as doava aos vizinhos.

Outras vezes, com o pretexto de entregar rosas, batia nas portas dos vizinhos para conversar. Daí, surgiam outras histórias loucas sobre namorados, amores proibidos, sonhos interrompidos, paixões secretas. Isso irritava a vizinhança. O papo sempre terminava com o conto sobre o padre e a gravidez que não chegou a vingar. “Graças à Nossa Senhora da Penha e à Santa Teresinha. Amém”.

Na comemoração do dia de Santa Teresinha em primeiro de outubro, Doralice montava um altar com a imagem da santa. Colocava uma toalha branca com borda em crochê na sua varandinha enfeitada com rosas amarelas e um rosário. Quem passasse pela frente do seu portão era convidado a entrar. Muitos não queriam participar do que consideravam uma palhaçada. Outros atravessam a rua. Alguns entravam, oravam uma Ave Maria, ganhavam uma rosa amarela e um pedaço de bolo de laranja.

Quando saí do bairro, ela ainda estava por lá com as mesmas histórias, vassoura em punho, olhinhos piscando e cuidando das roseiras. Vez por outra, quando eu retornava, recebia uma rosa amarela com as benções de Santa Teresinha.

Tempos depois, me disseram que havia sido internada com crise de asma. Ninguém mais soube dela ou quando e como  faleceu. A família também sumiu.

As roseiras amarelas permaneceram no corredor que levava à pequena moradia de fundos. Os novos inquilinos não tiveram coragem de arrancar. Quem sabe o imóvel teria alguma proteção por causa de tantas orações. Na dúvida, foi melhor deixar tudo como Doralice havia planejado com sua fé em Santa Teresinha.