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Uma avó e o 13 de maio

Ela me esperou para morrer. Aos 96 anos, já não tinha mais nada a dizer, a sonhar ou a fazer. Em poucos dias, minha avó deixou esse mundo. Foi se apagando como uma vela em noite de brisa suave.

Sabia que ela estava fraca. Não queria mais comer nem ficar na janela da sua casa em uma ladeira a caminho do morro do Tuiuti, em São Cristóvão, no Rio. Um manhã, corri para vê-la quando minha tia aflita me ligou. Cheguei a tempo ainda de presenciar um leve sorriso no seu rosto no momento em que sentiu minha presença. Segurei sua mão: “Oi, vó. Tô aqui”. Segundos depois, se foi.

Meu nome, Guilhermina, é por causa dela: a tradição se manteve. Essa homenagem sempre a deixou muito grata. Não cabia em si para fazer tudo o que minha existência e saúde pediam. Era só agradecimento em promessas, orações e um feijão com arroz que só ela sabia cozinhar. Me alimentei dessa iguaria não só para matar a fome, mas, também, para me nutrir de carinho.

E por que estou dizendo tudo isso? Bem, minha avó era neta de escrava. Com a proximidade do dia 13 de maio, não podia deixar passar de lado essa memória. Sua mãe nasceu logo depois da Lei do Ventre Livre de 1871. Do pai, dizem, nunca se comentou muito a respeito. Toda a família era do Morro do Estácio, meu pai inclusive. Pequena e de voz baixa, mas firme, minha avó era respeitada por todos somente com o movimento do seu olhar. Teve dez filhos dos quais oito sobreviveram. Não sei como os outros faleceram. Não comentava.

Como não lembrar da minha avó brasileira? Como não refletir sobre a herança que negros e escravos deixaram na minha construção como ser humano? Com ela, aprendi que, dentro de nós, carregamos a garra e a crença suficientes para seguir em frente, aconteça o que acontecer.

Soube de muitas histórias da família – com certeza havia outras que não chegaram aos meus ouvidos – que puseram à prova tudo o que ela aprendeu na dura rotina de neta de escravos nascida na última década do século 19 em uma favela da cidade.

Se manteve firme, esteio da família, até àquela data em que me aguardou para se despedir. Não poderia ter sido de outro jeito. Seu jeito doce, resiliente e fervoroso não combinava com cama de hospital, tubos, aparelhos apitando. Quando decidiu que era a hora, partiu e deixou a sua marca. Lembro sempre dela e nessa semana ainda mais.