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Um chá para a memória

Dulce resolveu que seria assim há muito tempo. “Velho não comemora aniversário. Vai virando a esquina da vida. Só conta os anos.”

Nascida e criada no bairro de São Cristóvão, zona central do Rio de Janeiro, tinha especial amor pela Quinta da Boa Vista. Sua casa fazia divisa com os muros do enorme parque que um dia abrigou o palácio que foi moradia do imperador do Brasil.

Lembra que havia um buraco por onde ela e seus irmãos entravam. Brincavam, rolavam na grama que envolve o lago e faziam piqueniques com as tias. Infância livre. Sentia muita saudade. Só sobrava ela, única mulher, da turma de 5 irmãos.

Naquele dia, saiu cedo de casa. Não queria papo nem votos de felicidade. Achava muito desagradável essa gente que se desmancha em palavras previsíveis de parabéns. Não acreditava em nenhuma delas. Desligou o telefone.

Como não tinha compromisso, passou o dia batendo perna pelo Centro da cidade. Mesmo sabendo que a região não era mais como na sua infância e juventude, gostava muito de caminhar pelas ruas estreitas e cheias de gente. Muita mudança. Não se conformava com a quantidade de chineses e coreanos que exploravam as lojas da Saara. Não tinha nada contra esses recentes empresários, mas a região de compras a céu aberto estava desfigurada.

Com carinho, lembrou do tempo que vinha com sua mãe visitar o bazar do Seu Hahib. Sempre saiam de lá com alguma compra, mesmo que não precisassem. O libanês era bom de papo. A mãe se derretia com os cabelos pretos, o bigode espesso e a fala mansa dele .

Andou bastante, sem preocupação. Comprou lã, linhas, agulhas e potinhos. Jogou na Mega Sena. Passou na padaria de origem libanesa, costume de criança, que vende a melhor esfiha de carne da cidade: massa fininha com muito recheio.

Atravessou o Centro desviando de camelôs, de pedintes, vendedores de quentinhas e propagadores com a bíblia nas mãos.

No fim do dia, o cansaço bateu. Achou melhor procurar um local para beber um chá ou um suco. Tomou o rumo da tradicional Confeitaria Colombo.

Dulce se equilibrou sobre as pedras centenárias por onde passaram Rui Barbosa, Olavo Bilac, Lima Barreto, Villas-Lobos. Os acordes de “O Trenzinho Caipira” chegaram aos seus ouvidos. Relembrou a avó que dedilhava ao piano essa canção nas tardes de domingo.

 — Tá atrasada, né? Depois, não fica por aí dizendo que a memória anda bem. Tá todo mundo lhe esperando, mãe. Marcamos às 4. Cadê o celular? Perdeu? Foi roubada? Já ia na polícia dar parte do seu sumiço. Ufa, que bom que apareceu.

Seu filho mais velho a esperava na porta. A família, incluindo netos, havia combinado um chá com bolo para comemorar seus 80 anos em meio às paredes forradas de espelhos da histórica confeitaria.