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Ela precisa de oxigênio

“Chora, boneca. Chora”, falou o médico. O parto normal havia sido muito difícil: durou horas. Ele tentava manter a menina no mundo dos vivos, mas sem muito sucesso. A bebê não conseguia chorar. O ar não chegava corretamente aos seus pulmões.  Como se dizia, havia passado do tempo: nascera roxa. Desespero total.

A mãe já havia perdido um filho há pouco mais de um ano. Outro seria sofrimento demais. Muito choro. Muita oração. Enfermeiras e médico bem assustados. De súbito, a bebê fez um barulhinho bem baixinho. “Ela precisa de oxigênio”, o médico gritou.

As enfermeiras saíram correndo com a bebê enrolada pelos corredores vazios do hospital da zona norte da cidade. Era uma manhã quente e úmida de uma sexta-feira de dezembro, antevéspera de Ano Novo no Rio de Janeiro na década de 1950. Não havia funcionários suficientes no plantão por causa da data. Não havia quem pegasse um cilindro de oxigênio que ficava no almoxarifado quatro andares abaixo.

Assistindo a correria desenfreada e desesperadora, o pai da menina decidiu intervir executivamente. Precisava salvar a filha. Não poderia perder outro bebê. Era uma opção contra o tempo, mas era uma opção. Perguntou aos berros onde ficavam os tais cilindros de oxigênio. Correu desenfreadamente degraus abaixo até o almoxarifado em meio à pouca luz do trajeto.

Pegou um dos cilindros sem saber se era o correto. Voltou pulando os degraus de dois em dois controlando a respiração e a angústia. Entregou aquele objeto comprido a uma das enfermeiras. A outra estava com a bebê no colo que não se mexia. Tudo foi muito rápido. A menina ainda tinha um resto de ar que vagorosamente entrava em seus pulmões. Mas, era pouco. Muito fraca, foi colocada numa incubadora com o oxigênio trazido pelo pai.

Sobrevivi. Consegui respirar graças ao cilindro que meu pai trouxe nos ombros. Com essas notícias da tragédia humanitária em Manaus e no Brasil afora a sensação de morte por falta de ar me invadiu. Acho que essa quase tragédia no meu nascimento colou essa sensação na minha alma como uma marca. Fico paralisada.

Nem consigo entender muito bem o que acontece. Leio mais de uma vez cada um dos tweets. Ouço mais de uma análise na tevê. Revejo as imagens. Cada vez, busco mais ar. Tudo é muito inacreditável. Parece ideia de um roteirista com muitos prêmios na estante. Ficção. Mas, não é! A cada notícia sobre o tema, fico sem ar.

Em janeiro de 2021, duas dessas manchetes me impressionaram muito bem lá no fundo do coração: “60 bebês recém-nascidos precisam ser transferidos” e “Pai carrega nos ombros oxigênio para o filho internado”.

Vi a entrevista desse pai desesperado que chorou diante das câmeras. Até quem o entrevistava chorou também. Como o meu, ele saiu correndo atrás de um cilindro de oxigênio para salvar a vida do filho.

Nesse dia, engasgada, de repente, comecei a chorar muito. O ar entrou nos meus pulmões. Diferente do que aconteceu quando nasci, consegui chorar. Senti muita dor, tristeza, desespero, repúdio por essa situação de guerra, de descaso pela vida humana. Indignação.

Nunca pensei ver ou ler coisa semelhante ainda mais levando em conta o que vivemos com essa pandemia. Já estamos há mais de um ano nessa situação e esse tipo de coisa acontece de forma ainda mais avassaladora.

Recentemente, vi outra matéria louca. Um rapaz se apresentou como voluntário em Manaus em uma ong criada exatamente para ajudar com os cilindros de oxigênio doados para os hospitais e casas de saúde da cidade. Só que não: ele comercializa esses cilindros pela internet no seu perfil. Foi preso!

Força, Manaus! Força, Brasil! Que mais pais fortes e decididos estejam no seu caminho para que o ar chegue aos pulmões de seus filhos e suas filhas. Todos precisam de oxigênio.