Categorias:

Um fantasma e as festas juninas

– Que tal o xadrez vermelho e branco? É sempre uma boa ideia para uma roupa de caipira. Podemos colocar sianinha e bordado inglês. Vai ficar lindo demais! Depois mais uns lacinhos vermelhos, botões, dizia uma das tias da menina, a costureira da família.

– Ah, mais a do ano passado não foi vermelha também? perguntou a outra tia.

– Não, tia. Foi não. Foi azul. Lembra que até a senhora pintou uns balõezinhos amarelos na gola. Lembra?, respondeu a menina que a essa altura da vida era uma adolescente comprida e meio desengonçada.

Luísa devia ter uns 11 ou 12 anos quando essa conversa se deu lá por algum ano da década de 1960. Essas tias e ela caminhavam de loja em loja nas ruas centrais do Rio de Janeiro, a Saara, conhecida área de comércio com preços convidativos. Estavam em busca do tecido ideal, da melhor combinação de cores e aviamentos. Tudo para fazer mais uma das muitas fantasias que ela teve ao longo da sua vida para as festas juninas da escola.

Fazia um dia ensolarado do mês de maio. Era um daqueles dias de outono do Rio de céu azul, muita luz e temperatura agradável. Dia ideal pra caminhar pelas ruas estreitas dessa região com muitas lojas de todos os tipos de produtos. Depois da caminhada, as três iriam lanchar na Confeitaria Colombo. Ficava também nas cercanias, ali na rua Gonçalves Dias, uma rua de paralelepípedos escorregadios e cheia de história. Grande programa com chocolate quente e bolo de laranja.

Luísa morava num bairro de classe média baixa na zona norte do Rio. Lá também participava de um grupo de dança caipira. Chamavam de “quadrilha”. Ela e os colegas se apresentavam nos clubes dos subúrbios da cidade. Ela achava tudo divertidíssimo. Era uma chance de sair de casa e conhecer gente e coisas diferentes.

Amava os ensaios, as viagens curtas em ônibus alugados, as tranças com laço na ponta, os tênis Conga brancos, o cheiro da fogueira queimando, os balões de papel colorido pendurados em todos os locais das festas. Ficava esperando essa época do ano. Até hoje, adulta, se emociona com as bandeirinhas coloridas penduradas balançando ao vento durante as festas de Santo Antônio, São João e São Pedro.

Suas tias não tiveram filhos. Assumiram os sobrinhos como tais. Mais velha,  ela teve o carinho e as orações das duas desde o difícil parto que a trouxe a esse mundo.  As tias não eram abastadas, mas podiam ajudar. Além disso, eram, como se dizia, muito prendadas. Faziam bolos, docinhos, salgadinhos, pintavam porcelana, costuravam e bordavam em ponto cheio e ponto de cruz.

Sabiam de tudo sobre corte e costura, especialmente, uma delas, a costureira. Daí, que a menina sempre tinha roupa nova, fantasia de Carnaval e de caipira diferentes a cada ano. Era ótimo para os pais dela que viviam um dia a dia doméstico bem simples e com contas apertadas. Pra ela, era uma sorte ter essa dedicação. Aproveitava e muito. Suas roupas sempre chamavam a atenção.

Ali pelas calçadas da avenida Passos, as tias conversavam, entravam nas lojas, perguntavam o preço e saiam. Luísa as seguia. Não se davam conta do que acontecia ao redor. Era uma abundância de tricoline, brim, gabardine, cetim de todas as cores. Muita pergunta para os vendedores sobre os preços, larguras dos tecidos. Além de tudo, as tias eram boas de papo. Conversam, conversam, conversavam.

De repente caminhando atrás delas, Luísa sentiu algo por dentro de sua roupa. O vestido era de xadrez amarelo e branco e fechado por botõezinhos na frente. Sentiu uma mão masculina e dedos entre as suas pernas. A mão entrou pela abertura dos botões do vestido. Tudo foi muito rápido.

Ela ficou paralisada, muda. Ficou como uma estátua na calçada em frente a uma das muitas lojas. Não conseguia atinar o que havia acontecido. Ninguém viu o que aconteceu. Se viu, se calou.

Acabou se perdendo das tias. Não conseguiu acompanhá-las em busca do tecido. Trêmula, continuou petrificada em frente à loja. O homem não retornou. Esse era o seu maior medo. Mas, como os anjos da guarda estavam alertas, uma das tias voltou. Achou que o tecido mais adequado estava na loja em frente onde a menina estava.

Ainda parada, ouviu seu nome ao longe. Acordou do pesadelo.

– Ah, Lulu, você está ainda aqui? Gostou mesmo desse tecido xadrez vermelho e branco, não é? Então, vamos comprar esse mesmo. O vestido vai ficar uma uva (gíria da época, significava lindo),completou a tia costureira.

Há alguns anos, Luísa jamais teria pensado em trazer esse triste episódio de volta à sua mente. Ficou escondido no cofre das situações desagradáveis da sua vida. Aquele dia, aquele vestido, aquele lanche eram um motivo de sofrimento.

Mas, os anos passaram. Nos seus mais longínquos sonhos de menina jamais imaginaria que deveria remexer essa história. Percebeu que era uma dor não esquecida. Dor que ficou escondida, mas incomodava muito.

Então, achou melhor aproveitar essa época do ano de festas juninas que tanto ama pra relembrar esse evento triste da sua vida, nem que fosse pra ela mesma. Precisava tirar o fantasma desse lugar obscuro das suas memórias. Foi melhor deixar que esse triste dia voltasse mesmo com a dor do abuso. Do contrário, ficaria assombrando, assombrando as suas lembranças.

O fantasma canalha e abusador sumiu da mente dela.