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O almoço da minha morte

Na cozinha, o panelão de carnes para o cozido fervia. Legumes e ovos cozidos já estavam em tigelas brancas sobre a bancada de madeira envelhecida e engordurada. A caçarola de arroz fumegava.

Na sala, com móveis que já atravessavam anos sem sair do lugar, a mesa com toalha de renda branca já estava montada. Sobre a cristaleira com conjuntos incompletos de copos estava o rei das sobremesas: o pudim de leite com calda dourada. Ao seu lado, nos pratinhos pintados com estampas diferentes, cajuzinhos, brigadeiros, beijinhos de moça esperavam a vez de serem devorados.

Foi assim que havia sido imaginado o reencontro comigo depois de 20 anos. Saí do país para dar conta da minha vida. As desavenças familiares eram imensas. E, ainda por cima, havia o dinheiro. Tudo parecia empecilho para um relacionamento, ao menos, protocolar. Não foi minha culpa se recebi uma bolada por parte materna.

Meu velho pai era pressionado para que eu participasse da rotina financeira da família. Acho que, no fundo, acreditava mesmo que a minha existência era fruto de uma escapada da minha mãe. E, era. Pouco se importava comigo. Um dia, cedeu. Pediu em uma mensagem de celular que eu voltasse antes de sua morte. Me emocionei com sua voz. No entanto, sabia que a ideia só poderia ter sido delas que não se conformavam com o tamanho da minha conta bancária.

O que era para ser um encontro familiar acabou em tragédia. Quer dizer, para quem me esperava. No meu caso, que já estava fria em uma gaveta de necrotério, foi o melhor que poderia ter acontecido. O táxi que peguei foi engolido por um caminhão de cimento. A vida voou junto com os pedaços de metal e de pneus. O motorista também partiu.

Não precisei ouvir as reclamações do porquê não mandava dinheiro ou não fazia, ainda em vida, um testamento. Minhas duas irmãs mais velhas, fracassadas e enrugadas, puderam discutir e brigar à vontade. Além disso, tiveram que lidar com o reconhecimento do corpo, os preparativos do enterro, a dor e o remorso do meu pai.  A grana vai para os “Médicos Sem Fronteiras”. Ninguém vai ver nenhum euro ou real. Nem meu pai.

Conto finalista e publicado na coletânea Prêmio Off Flip 2024