Categorias:

Moeda brasileira da sorte

A moeda de 1 Real surgiu nas mãos de Dona Fátima antes mesmo de existir na vida da maioria dos brasileiros.

A viúva morava sozinha em uma casa simples de subúrbio no Rio de Janeiro. Estava ali desde menina. Quando seus pais faleceram, herdou o imóvel de dois quartos e sala com paredes por pintar, telhado para consertar e bica do tanque precisando de reparo. Se mantinha com a pensão de ferroviário do marido.

Bem cedo, no dia do lançamento do Plano Real, em 1º de julho, ela saiu do mercado com a cabeça nas nuvens. Na esquina de casa, esbarrou em uma pessoa. Era uma cigana. Tentou se desvencilhar e foi cercada. A mulher queria ler a mão de Dona Fátima, contar um segredo, lhe dar um presente. Diante de tamanha insistência, acabou aceitando a consulta.

A cigana deveria ter como 80 anos, cabelos grisalhos com resto de tinta vermelha na ponta da longa trança, dedos com muitos anéis, olhos azuis marcados por lápis preto. Pegou a mão esquerda da viúva e falou sobre os pais, o enfarto fulminante do marido, a dificuldade no seu dia a dia, a sua solidão. Foi um choque.

— Nossa, como a senhora sabe de tanta coisa? Não lhe conheço.

A estranha tirou um saquinho de cetim dourado do bolso de sua longa saia de cor lilás. Entregou à Dona Fátima e segurou suas mãos.

—É hora desse tesouro ser seu. Espere até a meia-noite de hoje. Em seguida, segure com força e dirija seus pensamentos para o que está aqui dentro. Você tem direito a três pedidos. O primeiro deve ser feito no momento que tirar o laço, os outros dois um mês após a data de abertura. Cuidado! Os pedidos devem ser somente para você, para mais ninguém. Do contrário, será a sua desgraça. Teve gente que se deu mal porque não me obedeceu. Quando alcançar o terceiro pedido, entregue o saquinho bem fechado com o que está dentro dele à primeira pessoa que encontrar.

A cigana foi embora sem dizer mais nada. Desapareceu em meio ao trânsito embolado do horário. Seu perfume de rosa ficou no ar.

A viúva passou o restante do dia com o coração aos saltos. Ficou contando os minutos para ver o que havia dentro do saquinho. Andava de um lado para outro. Coçava a cabeça. Ia até o portão da casa para checar se a tal mulher apareceria de novo. Guardou o saquinho na gaveta da mesa da cozinha. Dali a vinte minutos, o pegou de novo. Sentou no sofá da sala, batia os pés descalços no chão. Se angustiava cada vez mais quando pensava como a cigana sabia tanto sobre a sua vida

À meia-noite em ponto, o som do velho relógio de carrilhão, que foi do seu avô, cantou. O passarinho saiu da sua casinha e voltou a entrar. Dona Fátima se concentrou, respirou fundo e abriu o saquinho. Dentro havia a tal moeda de 1 Real que ela acabara horas antes de ver na tevê. Achou tudo uma maluquice e, ao mesmo tempo, sentiu um desapontamento. “Só um real? O que vou fazer com isso? Que mulher maluca!”

Com muita raiva, xingou a cigana e se culpou por ter dado atenção a ela. No entanto, sua mente não parava de dar cambalhotas. A moeda da tevê nas suas mãos? Estranho. Passou parte da noite acordada com a moeda em cima da mesinha de cabeceira. Se dividia entre a dúvida de fazer o pedido ou se era melhor esquecer de vez tanta insanidade de uma desconhecida vestida como se fosse para um bloco de Carnaval.

Depois de idas e vindas mentais, acabou se convencendo que seria melhor seguir o conselho da cigana. Quem sabe, se não a obedecesse sua vida poderia ficar pior do que já estava. Melhor seria não correr risco. Colocou a moeda entre as duas mãos, esfregou e fez seu primeiro pedido: uma viagem a Miami. Era um sonho da juventude.

Na manhã seguinte, acordou com o som de palmas no portão da sua casa. Tropeçando, ainda com muito sono, conseguiu chegar até a pequena varanda.

—Dona Fátima? Preciso falar com a senhora. Meu nome é Jorge Silva. Sou advogado. Até que enfim achei a senhora. Posso entrar?

Um rapaz que ela não conhecia, bem moreno, vestido com um terno preto e com uma pastinha debaixo do braço abriu um grande sorriso para ela. Ela o deixou em entrar. Achava que seria de uma instituição de caridade.

***

Dona Fátima embarcou com destino aos Estados Unidos quinze dias depois. Havia ganhado um sorteio em uma promoção de supermercado com uma viagem a Miami.

Viajou com mais dois ganhadores e outras pessoas de uma excursão pré-programada. A moeda de 1 real também foi e dentro do saquinho dourado. Nada a separaria dela. A partir daquele encontro inusitado, teve a certeza de que a cigana falava, sim, a verdade. Foi de fato um anjo na sua vida. Era uma pessoa incomum, vestia um figurino estranho, mas a ajudou a realizar seu desejo.

A viúva sempre tinha em mente que ainda havia dois pedidos restantes. Sabia que não poderia deixar de cumprir o que lhe havia sido ordenado. Só não sabia o que pedir.

Uma noite, teve uma dor lancinante no estômago acompanhada de vômitos, tonteira, dor de cabeça, diarreia. O corpo todo coçava e estava cheio de manchas vermelhas. Sozinha, sem saber falar inglês ou espanhol, tentou achar a guia da excursão. Nada. O telefone do quarto dela não respondia. A dor só aumentava. Quase desmaiou. Estava apavorada. “Meu Deus, vou morrer sozinha num quarto em Miami. Esse não pode ser o meu destino. Tanto tempo para realizar esse sonho e o que me resta é não sair do banheiro?”

Com as forças se esvaindo, pegou a moeda de 1 Real com as duas mãos, esfregou bem e pediu que a dor passasse. Dois minutos depois, uma das pessoas do grupo de viagem bateu na sua porta. Ela custou a atender. Foi se arrastando pelo carpete roxo do quarto até a porta.

— Mas, nossa mãe, que cara é essa? O que aconteceu, Fátima?

Uma das companheiras da excursão estranhou que ela não havia descido para o jantar, que não atendia o telefone. Resolveu procurá-la. Foi atendida pelos paramédicos. Diagnóstico: intoxicação e alergia por causa de um prato com frutos do mar.

Perdeu alguns passeios, mas, pelo menos, estava melhorando. Não tirava da mente como aquela cigana poderia ter surgido na sua vida. Poderia ter morrido.

Ainda havia um pedido a ser feito para a fantástica moeda de 1 Real. O trigésimo dia se aproximava. Seria quando estaria chegando ao Brasil. A dúvida se repetia: o que pedir.

***

Já no voo, seus pensamentos não se aquietavam.

Lá pelas tantas quando o avião se aproximava da costa brasileira, as luzes se acenderam, o sinal de apertem os cintos idem, coisas caíram pelo chão, pessoas gritavam. Muita turbulência. Dona Fátima, em pânico, começou a chorar muito. O pavor tomou conta do seu corpo, do seu coração. Dizia em voz baixinha que não poderia morrer dentro de um avião, que aquele não poderia ser seu fim. A pessoa que estava ao seu lado perdeu os sentidos.

Pegou a moeda de 1 Real com as duas mãos. Esfregou mais que de costume. Pediu para que aquele sacolejo parasse e que ela fosse salva.

O avião voltou ao seu curso normal em poucos minutos.

—A senhora está bem? Se machucou? Precisa de algo?

Uma aeromoça passava por ela para checar com estavam os passageiros. Sua respiração ia se tranquilizando. A cor no seu rosto foi voltando. Sua mente foi se dirigindo para o que havia sido dito pela cigana. Olhou para a comissária. Colocou o saquinho dourado com a moeda de 1 Real nas mãos dela e começou o texto que já conhecia.

—Esse tesouro que está aqui é seu. Deve fazer três pedidos no intervalo de trinta dias. Após essa data, entregue o saquinho e o que está aqui dentro à primeira pessoa que encontrar. Faça o pedido sempre esfregando bem o objeto. Tudo o que pedir deve ser para você. Se não cumprir, algo de muito triste vai lhe acontecer. Aqui, tem muito poder.

A aeromoça agradeceu com a cabeça. Conferiu se o cinto de segurança dela estava bem atado. Enfiou o saquinho dourado dentro do bolso do uniforme e continuou a sua verificação.

Quando saía da aeronave na direção do controle de passaportes,  percebeu que o tal saquinho dourado estava ainda com ela. Retirou do bolso, abriu e viu uma moeda de 1 Real. Pensou novamente como a mulher que havia lhe dado essa “fortuna” era maluca. Repetiu para si mesma mais uma vez como ela sempre encontrava gente estranha na sua rotina. Jogou o saquinho na primeira lixeira que encontrou.

Ela era aeromoça da Varig. Foi demitida trinta dias depois. A empresa já vinha tentando se reestruturar e dispensando funcionários desde o ano anterior.

 Essa moeda de 1 Real deve ainda estar por aí.