Um dia, o pai levantou muito antes do galo da vizinha cantar. A menina sabia que ele acordava cedo mas, naquela vez, ele levantou antes da hora.
Vestiu uma camisa branca de mangas compridas, calça preta, sapatos e meias idem. Barba feita, cabelo com brilhantina penteado para trás. O relógio em ouro, herança paterna, além do anel com pedra vermelha foram colocados num jeito ligeiro.
Em silêncio, a mãe preparou a mesa: pão francês, manteiga, café puro. Ele saiu muito rápido para não perder o primeiro ônibus. Morava longe, no subúrbio. Tinha que chegar antes do raiar do sol ao centro do Rio.
Escondida, a menina queria entender o motivo desse movimento ainda de noite. Voltou para debaixo da sua colcha. Ao longe, ouviu o portão da casa ser fechado.
Mais tarde, comeu mingau de aveia polvilhado com canela em pó e tomou o rumo da escola. Palavras novas, colegas, levaram sua cabeça para longe. O episódio da madrugada sumiu dos seus pensamentos.
No fim do dia, viu uma fita vermelha de gorgurão no alto da estante da sala. Ficou na ponta dos pés, se espichou bastante. A fita veio junto com uma medalha prateada. Era a figura de um homem montado em um cavalo.
Foi atrás da mãe na cozinha.
— Isso não é brinquedo de criança, menina. Coloca de volta aonde você achou!
Sabia que os objetos do pai eram guardados sob um cuidado respeitoso. Era proibido mexer neles. Contrariada, obedeceu. Não entendia o porquê de tanta preocupação com caixas, envelopes, pastas. E, agora, aquela medalha.
Antes do jantar, resolveu que era hora de acabar com a curiosidade. Perguntou ao pai sobre a tal medalha.
— Ah, minha filha, é São Jorge. Me protege desde a Segunda Guerra Mundial. O padre benzeu de novo pra mim hoje pela manhã na igreja. Meu santo de devoção. Tenho muito que agradecer a ele. Me defendeu muito.
O pai cumpriu com esse ritual todo dia 23 de abril até a sua morte. Participava da alvorada e da missa do santo até mesmo quando já precisava de ajuda para ir à igreja de São Jorge na região central da cidade.
Nos últimos anos de vida, não deu mais para acompanhar as celebrações longe de casa.
Morreu aos 93 anos de idade com fé na proteção das armas de Jorge, o santo guerreiro.