Acordei cedo. O que me tirou dos lençóis foi o cheiro de bolo que vinha da cozinha. Só de lembrar, sinto de novo aquele aroma da minha infância. Não existe outro igual. Naquele dia, poderia até resistir a algum barulho para deixar a cama, mas ao bolo assando no forno, não.
A velha casa da minha avó – erguida nos anos 1910 – ficava em uma ladeira do bairro de São Cristóvão no Rio. O pé direito era muito alto, as paredes tinham chapisco e o piso de tábuas corridas costumava cantar a cada pisada. À noite, eu imaginava algum monstro caminhando pelo corredor por causa do ruído.
Na mesa do café da manhã, minhas tias se revezavam preparando brigadeiros, beijinhos de côco, cajuzinho. Falavam baixo para não me acordar. Quando me viram, perguntaram por que havia saído da cama tão cedo. Respondi que foi o cheiro do bolo.
“Melhor você tomar o leite com chocolate e comer o pãozinho que acabei de assar. Bolo, só de noite”. Minha avó logo percebeu que eu queria raspar a forma com uma colher e depois comer pedacinhos ainda quente. Adorava fazer isso. Aliás, ainda adoro.
Sou a mais velha de muitos netos e tenho o nome da minha avó paterna, Guilhermina. Não sei se por estas razões, sempre tivemos uma ligação muito grande. Nos entendíamos pelo olhar. Na manhã da sua morte, contou uma das minhas tias, ficou esperando a minha chegada para se despedir. Lembro que quando me abaixei para beijar sua testa, ela estava de olhos fechados e respirava bem devagar. Segurei suas mãos e falei nos seus ouvidos que eu estava bem perto dela. Logo depois, se foi como uma vela que se apaga sem precisar de brisa. Uma paz e uma gratidão imensa tomaram conta de mim. Sabia que aquele era o seu desejo. Já estava com 95 anos.
As três tias desse conto não tiveram filhos. Uma delas, inclusive, morava com a minha avó. Muitos achavam que eu era mimada demais, que sempre tinha a melhor roupa, o melhor prato de comida, o feijão mais gostoso. Eu as amava e levo comigo um agradecimento imenso por ter sido sua sobrinha, por tudo que fizeram e me ensinaram.
Aquele era um dia de festa. E para mim, o melhor acontecia antes dela.
Em determinados momentos, a atenção de todas elas se voltava para o tempo de cozimento dos salgadinhos e do preparo do cardápio da festa. A paciência das minhas tias comigo terminava quando as panelas pediam mais cuidado. Me restava sentar em banquinho vermelho no fundo quintal e ficar sentindo o cheiro que saía da cozinha: da empadinha no forno, do pastel na frigideira, da calda de caramelo na boca do fogão.
Gelo, guaraná, cerveja chegavam no automóvel preto do meu tio. Ele era taxista. Nesses dias, dirigia pra lá e pra cá. Sempre faltava um ingrediente. Quando ouvia o barulho do motor, eu corria. Me pendurava em uma das duas janelas verdes da casa da ladeira para ver aquele monte de sacolas de feira que ele tirava da mala.
Já de tarde, o bolo era colocado em cima da mesa da sala sobre uma toalha branca de bainha aberta. Uma das minha tias batia o suspiro na mão mesmo; transformava aquelas claras em um creme muito branquinho.
Depois de muita insistência, ela me deixava ir colocando as gotinhas de limão no suspiro. Eu ajoelhava em uma das cadeiras e ia derramando bem devagarinho o líquido verde. Quando aquele creme ficava igual à neve, ia pra cima do bolo. Ela acertava o suspiro com uma faca de cabo prateado que eu achava que era uma mini espada.
Não lembro de quem era o aniversário ou qual o motivo da festa. Só lembro que o cheiro desse bolo, a atenção carinhosa das minhas tias e o calor da minha avó estão agora comigo. Todas já se foram. Restam a lembrança, a saudade e esse perfume de bolo caseiro.