Houve uma época no estado da Guanabara – a fusão com o estado do Rio de Janeiro e a passagem para ser capital com o mesmo nome só aconteceu em 1975 -, em que as casas de alguns bairros ficavam sem luz em dois períodos do dia. Tempos de racionamento. Acho que foi resultado de um longo verão sem chuvas que diminuiu muito a vazão dos rios que abasteciam as usinas que geravam a eletricidade.
Digo “acho” porque na minha memória infantil, as noites, principalmente, eram de muita curiosidade e alegria ao redor da mesa da cozinha após o jantar.
Eu não tinha noção do acontecia por causa da falta de luz, como os transtornos domésticos ou a preocupação com os alimentos. A velha geladeira azul não suportava muito bem “o liga e desliga”, por exemplo. Minha mãe xingava a empresa fornecedora de energia, o governo, as chuvas que não caiam, o calor infernal. Muitas e muitas vezes precisou retirar leite, manteiga e frutas da geladeira e jogar fora. Para quem passou dificuldades quando criança, como ela – não sabia o que teria para o café da manhã ou para o almoço -, colocar comida no lixo era uma tortura.
Com a cozinha iluminada por velas, brincávamos com blocos de madeira, com quebra-cabeças, desenhávamos, produzíamos sombras nas paredes e ouvíamos histórias da vida dos meus pais. O meu mundo de subúrbio era pequeno e circunscrito às poucas idas à casa da minha avô e à Quinta da Boa Vista, ambas em São Cristóvão, ao colégio do bairro e à missa aos domingos. Histórias contadas, assim como os livros, eram viagens a lugares, sentimentos, descobertas e personagens que só existiam exatamente naquelas frases, sons e palavras.
“Não fiquei sem uma das orelhas por um triz”. “Meu dedinho mindinho do pé congelou. Achei que ia ficar sem ele também”. “As bombas explodiram a noite toda perto do nosso esconderijo. Quando o sol nasceu, vimos que quase tudo ao nosso redor havia sido destruído. Só sobraram dois. Um deles era eu. A ajuda demorou a chegar”. “Consegui escrever uma carta pra sua avó de dentro de um casa que desmoronava”. “Tive que aprender a comer nas latinhas de comida”.
Meu pai esteve na Segunda Guerra Mundial. Era muito jovem, mas como servia o Exército quando o Brasil entrou no conflito, foi convocado para desespero da mãe e das irmãs. Rastejou por entre escombros e casas em ruínas; caminhou por estradas desertas ouvindo idiomas estranhos, enxergando campos solitários. A pele negra ficava cinza de tanto frio e neve, algo até então improvável para um carioca.
Aqueles dias de guerra ainda estavam muito vívidos quando o racionamento chegou ao subúrbio onde morávamos. A cada noite, ele contava um episódio sobre a experiência na Itália. Falava como se desejasse passar para gente que, apesar das dificuldades e do medo, lutar e resistir eram as únicas atitudes possíveis. Era isso ou inferir à minha avó a dor de receber um militar na porta de casa comunicando a sua morte. Permanecer vivo, e de preferência sem sequelas, era o objetivo diário. Não sei calcular o que de tudo isso poderia não ser verdade. Ou melhor, fruto da sua capacidade de contar histórias.
Ao longo dos anos, fui entendo que para ele o mais importante era que a gente entendesse que para seguir em frente é necessário manter a força interna. Claro, que deveria haver também uma pontinha de orgulho por ter sobrevivido às agruras da guerra.
Lembrei dessas noites da infância com as notícias do agravamento das guerras, especialmente, com o ataque dos Estados Unidos ao Irã e às bases americanas no Oriente Médio. Como costumo pontuar, o mundo capota várias vezes ao dia e continua a produzir situações de dúvidas, de desafios e de muito sofrimento. A crescente desorganização mundial é preocupante. O que esperar? Afinal, enquanto escrevo o que será que aconteceu a mais? Torço que, ao menos, um cessar-fogo tenha sido conseguido e mantido.
Fico me perguntando quantas crianças ainda poderão escutar as histórias dos lábios de seus pais, mães, tios, tias, parentes. O futuro que se desenha é muito nebuloso. Eu, pelo menos, estou por aqui e posso contar uma parte bem pequena do que ouvi do meu pai.