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A meia solitária

Lá pelo começo da década de 1990, meu filho deveria ter oito ou nove anos e estava naquela fase “já sei escrever”. Nós o estimulávamos a colocar no papel o que vinha à sua cabeça do jeito que fosse e sem regras. A professora Márcia também trilhava o mesmo caminho.

As histórias eram recheadas daquela certeza própria da idade de que tudo é verdade de fato e não uma possibilidade. Os seus personagens, na maioria do mundo animal, só poderiam surgir mesmo de uma cabeça infantil que se permite inventar qualquer atmosfera, situação ou desfecho. Sempre admirei, e admiro, essa licença mental, poética e criativa das crianças. Pensamento livre que voa e se transforma no que elas querem.

Um de seus contos tinha como personagem uma insólita meia triste que vivia só porque não tinha um sapato. Um dia, pediu ajuda à Dona Aranha que sugeriu que ela fosse a uma sapataria. “Lá sempre tem algum sapato em bom estado”. A tal da meia aceitou a ideia, saiu pulando, cantando e gritando “viva” até que entrou na loja e se espantou. “Uau, quanto sapato”. Depois que havia escolhido o modelo que melhor combinava com seu estilo, correu antes que o dono da loja percebesse que ela queria ficar com um dos modelos expostos. Insistiu algumas vezes para entrar em um dos sapatos até que “viva, viva, entrei”.

Meu filho recebeu estrelinha e um “você é o máximo!!!” Amamos a iniciativa, o tema e a avaliação.
Lendo essa e outras das muitas redações e histórias dele – devidamente guardadas pelo pai ao longo de tanto tempo – lembrei do quanto precisamos do outro para ser alegre e não se sentir desamparados. Solidão só é boa quando é uma escolha pragmática. Ela pode, sim, ser positiva. Tem momentos que um cantinho sem a presença de ninguém ajuda a entrar em contato com o eu interior, se equilibrar e se encontrar ou reencontrar.

Como tudo tem limite, no entanto, nós precisamos sair em busca de um sapato, de outra pessoa, de outro amigo, de outro amor, de outro desafio que nos faça seguir em frente e ter uma razão maior para aproveitar a vida. E como a protagonista da redação passar “, dali em diante, a ser uma meia muito feliz”.
Crianças e suas ideias incríveis e didáticas.