Saí cedinho sem a menor ideia de como comprar pão e ovo para o café da manhã. Era outono em Vódice, uma cidade pequena da Croácia. Veja bem, não falo nenhuma palavra do idioma servo-croata ou algum dos muitos dialetos locais. O país é um dos sete que surgiram após o desmoronamento da Iugoslávia nos anos 1990.
Vódice tem mais ou menos 8500 habitantes. Seu grande charme é que está na costa do Mar Adriático. Do outro lado, a Itália. Linda.
Resolvi caminhar até bem pertinho da água pensando como me comunicar. Ventava suave. As velas dos barcos da marina balançavam preguiçosas. Àquela hora, apenas alguns pescadores e furgões que recolhem os peixes e abastecem a maior parte dos restaurantes da região e do entorno.
Sentei na calçada da esquina de uma rua de frente para o mar. Tomando coragem para entrar em um mini mercadinho qualquer quando já tivessem abertos. Não eram muitos. Precisava falar alguma coisa, usar a língua de sinais, pedir ajuda à moça do Google ou falar em inglês – algumas pessoas falam, principalmente, nas cidades maiores, o que não era o caso.
Ouvi um barulho surdo. Uma mala preta havia sido jogada da janela do segundo andar de um prédio vermelho velho. Caiu aberta. Camisas, calça jeans, meias espalhadas pela rua estreita. Depois, veio um celular que se espatifou. Atrás dele, um homem de meia idade vestindo uma bermuda preta, descalço e cabelos desalinhados. Pegou o aparelho. Se acomodou na calçada em frente.
De repente, começou a cantar: “Vai minha tristeza; e diz a ela que sem ela não pode ser; diz-lhe em uma prece que ela regresse; porque eu não posso mais sofrer”. Parava um pouquinho e voltava a repetir o mesmo trecho da canção de Vinícius e Tom Jobim.
Eu esperava que toda a vizinhança colocasse, ao menos, a cabeça para fora das janelas. Nada. Silêncio e só a voz naquela manhã em Vódice. Quem sabe, os vizinhos não estivessem por detrás das venezianas apreciando a cena. Bem, isso já era meu pensamento voando.
Depois de alguns minutos, o homem parou de cantar, recolheu as peças jogadas e o celular com a tela quebrada. Tomou o rumo do mar. Quando passou pela minha frente: “O senhor fala português?”. Preciso comprar pão para o café da manhã”. As palavras saíram da boca sem pensar. Caí em mim quando ele me olhou com desânimo e espanto. Senti a merda que eu havia feito. Já não dava mais para voltar atrás.
Ele fez sinal para que o seguisse. Andamos por algumas ruazinhas estreitas. Chegamos a um imóvel do que me pareceu ser uma padaria pelo cheiro que estava no ar. Deu três toques na porta. Um rapaz abriu e se espantou com a minha presença.
O homem entrou, pegou 2 pães integrais, 4 ovos e colocou tudo em um saco de papel pardo. Disse algumas palavras para o empregado, que óbvio, não entendi. Me entregou o tal saco e sumiu para os fundos empoeirados de farinha. Catei no meu bolso as notas e as moedas de kuna, a moeda croata. O rapaz fez “não” com a cabeça. Insisti. Mais uma vez, “não”. Enfim, entendi que era uma oferta sem a necessidade de uma só palavra. Tomei o rumo do apartamento Airbnb distante dali 35 minutos a pé.
A voz da manhã em Vódice salvou o nosso café. Mas, aquele olhar desolado do homem de bermuda preta me acompanhou por boa parte das horas.
No dia seguinte, voltei ao endereço da tal padaria. Na porta, um cartaz em croata e em inglês: “Closed Forever”.